Contrapartes – James Joyce

Originalmente publicado em junho de 1914 no livro Dublinenses (Dubliners), o nono conto da coletânea.
Conto em domínio público, disponível em inglês.
Tradução: Santiago Santos, abril de 2016 | 3.972 palavras

O sino tocou furiosamente e, quando a senhorita Parker pegou o receptor, uma voz furiosa bradou num sotaque estridente do norte da Irlanda:

“Mande o Farrington aqui!”

A senhorita Parker voltou à sua máquina, dizendo ao homem que escrevia numa mesa:

“O Sr. Alleyne chamou você lá em cima.”

O homem resmungou “Ele que se dane!” bem baixo e empurrou a cadeira para se levantar. De pé, se via que era alto e corpulento. Tinha um rosto pesaroso, cor de vinho tinto, com sobrancelhas e bigode claros: seus olhos eram ligeiramente protuberantes e o branco deles era sujo. Ergueu o tampo do balcão e, passando pelos clientes, saiu do escritório com passos pesados.

Ele subiu pesadamente as escadas até chegar ao segundo patamar, onde uma porta tinha uma plaqueta de bronze parafusada com a inscrição Sr. Alleyne. Aqui ele parou, ofegando de esforço e vexação, e bateu. A voz aguda exclamou:

“Entre!”

O homem entrou na sala do Sr. Alleyne. Simultaneamente o Sr. Alleyne, um homem pequeno que usava óculos de aro dourado num rosto barbeado, ergueu a cabeça de uma pilha de documentos. A cabeça em si era tão rosada e careca que parecia um grande ovo repousando sobre os papéis. O Sr. Alleyne não perdeu tempo:

“Farrington? O que significa isso? Por que sempre tenho que reclamar de você? Posso saber por que ainda não fez uma cópia do contrato entre Bodley e Kirwan? Eu lhe disse que precisava disso pronto até as quatro horas.”

“Mas o Sr. Shelley disse, senhor–”

O Sr. Shelley disse, senhor… Preste atenção ao que eu digo e não ao que O Sr. Shelley diz, senhor. Você sempre tem uma desculpa ou outra pra se esquivar do trabalho. Deixe-me lhe dizer que se o contrato não estiver copiado até o final desta tarde eu vou levar o assunto ao Sr. Crosbie…. Você está me entendendo?”

“Sim, senhor.”

“Você está me entendendo?… Ah e outra coisa! Eu posso muito bem estar falando com a parede quando falo com você. Entenda de uma vez por todas que você tem meia hora pro almoço e não uma hora e meia. Quantos pratos você inclui nessa refeição, eu gostaria de saber… Está entendido?”

“Sim, senhor.”

O Sr. Alleyne voltou a curvar a cabeça sobre a pilha de papéis. O homem encarou fixamente o crânio polido que dirigia os negócios da Crosbie & Alleyne, avaliando sua fragilidade. Um espasmo de raiva agarrou sua garganta por alguns momentos e então passou, deixando em seu encalço uma sensação aguda de sede. O homem reconheceu a sensação e sentiu que precisava de uma boa noite de bebedeira. Passava da metade do mês e, se ele terminasse a cópia a tempo, o Sr. Alleyne talvez pudesse lhe dar um adiantamento do salário. Ele ficou parado, contemplando fixamente a cabeça sobre a pilha de papéis. De repente o Sr. Alleyne começou a revirar todos os papéis, procurando por algo. Então, como se não estivesse ciente da presença do homem até aquele momento, ergueu a cabeça novamente, dizendo:

“Hm? Você vai ficar parado aí o dia todo? Por tudo que é sagrado, Farrington, você não leva as coisas a sério!”

“Eu estava esperando pra ver…”

“Muito bem, você não precisa esperar pra ver. Vá lá pra baixo e faça o seu trabalho.”

O homem andou pesadamente na direção da porta e, ao sair da sala, ouviu o Sr. Alleyne gritar na sua direção que se o contrato não estivesse copiado até o fim da tarde o assunto chegaria aos ouvidos do Sr. Crosbie.

Ele voltou para a sua mesa no escritório inferior e contou as folhas que faltavam ser copiadas. Pegou a caneta e a molhou na tinta mas continuou encarando estupidamente as últimas palavras que havia escrito: Sob hipótese alguma deve o citado Bernard Bodley beneficiar… A tarde estava acabando e em poucos minutos acenderiam os lampiões a gás: então poderia escrever. Ele sentiu que precisava matar a sede na sua garganta. Levantou da mesa e, erguendo o tampo como antes, saiu do escritório. Ao sair o escrivão-chefe olhou para ele inquiridoramente.

“Está tudo certo, Sr. Shelley,” disse o homem, indicando com o dedo o objetivo da sua jornada.

O escrivão-chefe olhou para o cabideiro de chapéus e, vendo que estava com a fileira completa, não disse nada. Assim que chegou no patamar o homem tirou uma boina xadrez de lã branca e preta do bolso, colocou na cabeça e desceu rapidamente a escada de degraus bambos. Da porta da rua andou furtivamente pelo lado de dentro da calçada em direção à esquina e se enfiou de supetão por uma porta. Estava agora a salvo na escura cabine privada¹ do bar O’Neill’s, e enchendo a janelinha que dava para o balcão com sua cara inflamada, da cor do vinho tinto ou da carne vermelha, ele chamou:

“Ei, Pat, meu camarada, me vê um copo de porter².”

O garçom lhe trouxe um copo de plain porter. O homem bebeu em um só gole e pediu uma semente de cominho³. Ele colocou sua moeda de centavo no balcão e, deixando o garçom tateá-la nas sombras, retirou-se da cabine tão furtivamente quanto entrara.

Escuridão, acompanhada de uma neblina espessa, começava a dominar o anoitecer de fevereiro e os lampiões na rua Eustace haviam sido acesos. O homem seguiu pelas casas até alcançar a porta do escritório, pensando se conseguiria terminar sua cópia a tempo. Na escadaria um odor pegajoso e intenso de perfumes saudou o seu nariz: evidentemente a senhorita Delacour viera enquanto ele estava no O’Neill’s. Amassou sua boina, a enfiou de volta no bolso e entrou no escritório, assumindo um ar distraído.

“O Sr. Alleyne estava lhe procurando,” disse severamente o escrivão-chefe. “Onde você estava?”

O homem olhou os dois clientes que estavam parados no balcão como se para indicar que a presença deles o impedia de responder. Como ambos os clientes eram homens o escrivão-chefe deu uma risada.

“Conheço esse jogo,” ele disse. “Cinco vezes num dia é um pouco… Bom, é melhor você se apressar e pegar uma cópia da nossa correspondência do caso Delacour para o Sr. Alleyne.”

A fala na presença do público, sua corrida escada acima e a porter que ele engolira com tamanha voracidade confundiram o homem e, ao sentar em sua mesa para preparar o que lhe fora pedido, percebeu como era desesesperançosa a tarefa de terminar sua cópia do contrato antes das cinco e meia. A noite escura e garoenta estava chegando e ele ansiava por passá-la nos bares, bebendo com seus amigos entre o brilho dos lampiões e o clamor dos copos. Pegou a correspondência do caso Delacour e saiu do escritório. Esperava que o Sr. Alleyne não descobrisse que faltavam as últimas duas cartas.

O perfume pegajoso e intenso dominava todo o caminho até a sala do Sr. Alleyne. A senhorita Delacour era uma mulher de meia idade de aparência judia. Diziam que o Sr. Alleyne tinha um apreço por ela ou pelo dinheiro dela. Ela costumava vir ao escritório e ficava um bom tempo quando vinha. Ela agora estava sentada ao lado da mesa dele num aroma de perfumes, alisando o cabo do seu guarda-chuva e balançando a grande pena preta do seu chapéu. O Sr. Alleyne havia girado sua cadeira para encará-la e assentado o pé direito garbosamente sobre o joelho esquerdo. O homem colocou a correspondência na mesa e se curvou respeitosamente mas nem o Sr. Alleyne ou a senhorita Delacour notaram seu cumprimento. O Sr. Alleyne bateu com um dedo na correspondência e o lançou na sua direção como se para dizer: “Tudo certo: pode se retirar.

O homem retornou ao escritório do andar inferior e sentou novamente em sua mesa. Encarou atentamente a frase incompleta: Sob hipótese alguma deve o citado Bernard Bodley beneficiar… e pensou como era estranho que as três últimas palavras começassem com a mesma letra. O escrivão-chefe começou a apressar a senhorita Parker, dizendo que ela nunca terminaria de datilografar as cartas a tempo de postá-las. O homem escutou o barulho do teclado da máquina por alguns minutos e então voltou a trabalhar para terminar a cópia. Mas não estava atento e sua mente divagava até alcançar o brilho e a algazarra do bar. Aquela era uma noite propícia para ponches quentes. Ele trabalhou com afinco na cópia, mas quando o relógio bateu cinco horas ele ainda tinha catorze páginas para escrever. Maldição! Não conseguiria terminar a tempo. Sua vontade era de xingar em alto e bom som, de acertar algo violentamente com o seu punho. Estava tão enraivecido que escreveu Bernard Bernard em vez de Bernard Bodley e teve que recomeçar numa folha em branco.

Ele se sentia forte o bastante para derrubar todos no escritório sozinho. Seu corpo ansiava por fazer algo, por explodir e se refestelar na violência. Todas as indignidades da sua vida o enraiveciam… Será que podia pedir ao caixa, em privado, um adiantamento? Não, o caixa não cederia, não cederia de jeito nenhum: não daria o adiantamento… Ele sabia onde encontraria os rapazes: Leonard e O’Halloran e Flynn Xereta. O barômetro da sua natureza emocional estava cravado no nível da revolta.

Sua imaginação o abstraíra tanto que seu nome foi chamado duas vezes antes que respondesse. O Sr. Alleyne e a senhorita Delacour estavam parados do lado de fora do balcão e todos os escrivãos haviam se virado esperando algo. O homem se levantou da mesa. O Sr. Alleyne começou a dar-lhe uma bronca em voz alta dizendo que faltavam duas cartas. O homem respondeu que não sabia nada a respeito delas, que fizera uma cópia fiel. A bronca continuou: foi tão amarga e violenta que o homem mal podia conter seu punho de descer na cabeça do nanico diante dele:

“Não sei nada de outras duas cartas,” ele disse estupidamente.

Nãosabenada. É claro que você não sabe nada,” disse o Sr. Alleyne. “Me diga,” acrescentou, olhando antes pra mulher ao seu lado em busca de aprovação, “você me toma por um tolo? Acha que eu sou um grande tolo?”

O olhar do homem foi do rosto da mulher pra cabecinha em formato de ovo e de volta; e, quase antes que se desse conta, sua língua encontrou um momento oportuno:

“Não acho, senhor,” ele disse, “que seja justo me fazer essa pergunta.”

Os escrivãos chegaram a prender a respiração. Todos ficaram impressionados (o autor do gracejo não menos que seus vizinhos) e a senhorita Delacour, que era uma pessoa corajosa e amável, começou a sorrir largamente. O Sr. Alleyne corou até atingir o matiz de uma rosa silvestre e sua boca se contorceu com a impetuosidade de um anão. Ele sacudiu seu punho na cara do homem até que parecesse vibrar como a protuberância de alguma máquina elétrica.

“Seu canalha impertinente! Seu canalha impertinente! Eu acabo com você num segundo! Espere só pra ver! Você vai se desculpar comigo por essa impertinência ou será despedido do escritório neste instante! Você será despedido, está entendendo, se não pedir desculpas!”


 

Ele estava parado no lado oposto da rua, diante da porta do escritório, esperando para ver se o caixa sairia sozinho. Todos os escrivãos saíram e finalmente o caixa saiu junto com o escrivão-chefe. Não adiantava tentar falar com ele quando estava com o escrivão-chefe. O homem sentiu que estava numa péssima posição. Fora obrigado a oferecer uma desculpa abjeta ao Sr. Alleyne pela sua impertinência e agora sabia que o escritório se tornaria um ninho de marimbondos para ele. Podia lembrar a forma como o Sr. Alleyne perseguira o pequeno Peake até que saísse do escritório para abrir espaço pro seu próprio sobrinho. Ele se sentiu furioso e sedento e vingativo, chateado consigo e com todos os outros. O Sr. Alleyne nunca lhe daria um desconto que fosse; sua vida seria um inferno. Ele desempenhara mesmo o papel de tolo dessa vez. Não podia ter ficado de boca fechada? Mas eles nunca tinham se dado bem desde o início, ele e o Sr. Alleyne, desde o dia que o Sr. Alleyne o ouvira imitando o seu sotaque do norte da Irlanda para divertir Higgins e a senhorita Parker: aquilo fora o começo de tudo. Ele poderia ter pedido um dinheiro a Higgins, mas Higgins nunca tinha nem mesmo para si. Um homem com duas casas para sustentar, é claro que ele não podia…

Ele sentiu seu grande corpo novamente ansiando pelo conforto do bar. A neblina havia começado a esfriá-lo e ele se perguntou se conseguiria algo emprestado com o Pat no O’Neill. Ele nãco conseguiria mais que um xelim¹¹ com ele — e um xelim não serviria. Mesmo assim ele precisava conseguir dinheiro de um jeito ou de outro: ele gastara seu último centavo no copo de porter e logo seria tarde demais para conseguir dinheiro no lugar que fosse. De repente, ao manusear a corrente do seu relógio, ele pensou na loja de penhores do Terry Kelly na rua Fleet. Na mosca! Por que não pensara nisso antes?

Ele passou pelo beco estreito do Temple Bar rapidamente, murmurando que todos podiam ir para o inferno porque ele ainda conseguiria ter uma bela duma boa noite. O caixa do Terry Kelly disse Uma coroa! mas o cliente pediu seis xelins; e no final os seis xelins foram-lhe concedidos literalmente. Ele saiu alegremente da loja de penhores, fazendo um pequeno cilindro com as moedas entre seu dedão e os outros dedos. Na rua Westmoreland as calçadas estavam apinhadas com jovens homens e mulheres voltando do trabalho e moleques esfarrapados corriam aqui e ali gritando os nomes dos jornais vespertinos. O homem passou pela multidão, observando o espetáculo em geral com orgulhosa satisfação e encarando com ar autoritário as garotas dos escritórios. Sua cabeça estava cheia dos barulhos das sinetas dos bondes com seus carros sibilantes e seu nariz já farejava o ponche de vapores espiralados. Enquanto andava considerava os termos em que narraria o incidente aos rapazes:

“Então, eu só olhei pra ele — com calma, vocês sabem, e olhei pra ela. Aí olhei de volta pra ele de novo — gastando o tempo, vocês sabem. ‘Não acho que seja justo me fazer essa pergunta,’ eu disse.”

Flynn Xereta estava sentado no seu canto costumeiro do Davy Byrne e, quando ouviu a história, pagou uma meia dose para Farrington, dizendo que era a coisa mais brilhante que já ouvira. Farrington pagou uma bebida na sequência. Depois de um tempo O’Halloran e Paddy Leonard chegaram e repetiram a história para eles. O’Halloran pagou doses de puro malte quente para todos e contou a história da resposta que ele dera ao escrivão-chefe quando trabalhava no Callan da rua Fownes; mas, como a resposta fora nos moldes dos pastores liberais das Éclogas, ele foi obrigado a admitir que não fora tão astuta quando a resposta do Farrington. Diante disso, Farrington disse aos rapazes para enxugar os copos e pediu outra rodada.

Logo quando escolhiam seus venenos Higgins deu o ar da graça! Claro que teve que se juntar a eles. Os homens pediram que desse a sua versão do ato, e ele o fez com grande vivacidade, pois a visão de cinco uísques quentes era bastante excitante. Todo mundo caiu na gargalhada quando ele mostrou o jeito que o Sr. Alleyne sacudiu o punho na cara de Farrington. Então ele imitou Farrington, dizendo, “e aqui estava meu parceiro, bem tranquilão,” enquanto Farrington olhava o grupo com seus olhos pesados e sujos, rindo e às vezes capturando gotas errantes de bebida do seu bigode com a ajuda do lábio inferior.

Quando aquela rodada acabou fizeram uma pausa. O’Halloran tinha dinheiro mas nenhum dos outros dois parecia ter um tostão; então o grupo todo saiu do bar de certo modo arrependido. Na esquina da rua Duke, Higgins e Flynn Xereta desceram pelo caminho da esquerda enquanto os outros três voltaram pra cidade. A garoa caía nas ruas geladas e, quando chegaram no escritório da Ballast, Farrington sugeriu o Scotch House. O bar estava cheio de homens e barulhento com os ruídos de línguas e copos. Os três homens abriram caminho entre os vendedores lamurientos de fósforos na porta e formaram um pequeno reduto na quina do balcão. Eles começaram a contar histórias. Leonard os apresentou a um jovem rapaz chamado Weathers que atuava no Tivoli como acrobata e artista de humor pastelão. Farrington pagou uma rodada para todos. Weathers disse que aceitaria um uísque irlandês com Apollinaris¹². Farrington, que sabia bem o que era aquilo, perguntou aos rapazes se eles não queriam uma Apollinaris também; mas os rapazes pediram ao Tim para fazer o deles puro. A conversa foi ficando teatral. O’Halloran pagou uma rodada e depois Farrington pagou outra rodada, Weathers protestando que a hospitalidade deles era generosa demais. Prometeu levá-los aos bastidores e apresentá-los a umas garotas bacanas. O’Halloran disse que ele e Leonard iriam, mas que Farrington não iria pois era um homem casado; e os olhos pesados e sujos de Farrington encararam de soslaio os companheiros, indicando que sabia que estava sendo alvo de chacota. Weathers os obrigou a tomar uma única dose por sua conta e prometeu encontrá-los mais tarde no Mulligan da rua Poolbeg.

Quando o Scotch House fechou eles foram até o Mulligan. Foram para o salão nos fundos e O’Halloran pediu uma rodada de uísque com açúcar e água quente. Estavam começando a se sentir grogues. Bem quando Farrington pagava outra rodada Weathers voltou. Pro alívio de Farrington ele bebeu um copo pequeno de cerveja dessa vez. Os fundos estavam acabando mas tinham o suficiente para continuar. Naquele momento duas moças com chapéus largos e um jovem num terno xadrez chegaram e se sentaram numa mesa próxima. Weathers os saudou e disse ao grupo que eles eram do Tivoli. Os olhos de Farrington saltavam a todo momento na direção de uma das jovens. Havia algo notável na sua aparência. Uma echarpe imensa de musselina azul-pavão estava presa ao redor do seu chapéu e amarrada num grande arco sob o queixo; e ela usava luvas amarelhas brilhantes que alcançavam o cotovelo. Farrington fitava admirado o braço roliço que ela movia bastante e com muita graça; e quando, depois de algum tempo, ela correspondeu seu olhar, ele admirou ainda mais os seus grandes olhos castanho-escuros. A expressão oblíqua contida neles o fascinava. Ela o olhou uma ou duas vezes e, quando o grupo saía do salão, ela esbarrou na sua cadeira e disse “Oh, perdão!” num sotaque londrino. Ele a observou sair do salão na esperança de que olhasse para trás, mas ficou desapontado. Xingou sua falta de dinheiro e xingou todas as rodadas que pagara, particularmente todos os uísques e Apollinaris que pagara a Weathers. Se havia uma coisa que ele odiava era um parasita. Estava tão nervoso que perdeu o fio da conversa com seus amigos.

Quando Paddy Leonard o chamou ele se tocou que falavam a respeito de demonstrações de força. Weathers mostrava o seu bíceps ao grupo e se vangloriava tanto que os outros dois tiveram que convocar Farrington para defender a honra nacional. Farrington puxou a manga do mesmo jeito e mostrou o seu bíceps ao grupo. Os dois braços foram examinados e comparados e finalmente se decidiu que deveriam fazer um teste de força. Limparam a mesa e os dois homens descansaram os cotovelos sobre ela, apertando as mãos. Quando Paddy Leonard dissesse “Vai!” cada um deveria tentar derrubar a mão do outro na mesa. Farrington parecia muito sério e determinado.

O teste começou. Depois de cerca de trinta segundos Weathers derrubou a mão do seu oponente lentamente na mesa. O rosto de vinho tinto de Farrington ruborizou e escureceu ainda mais com a raiva e humilhação de ter sido derrotado por um rapazote.

“Você não pode usar o peso do corpo junto. Jogue limpo,” ele disse.

“Quem não jogou limpo?” disse o outro.

“Vamos de novo. Melhor de três.”

O teste começou novamente. As veias saltaram da testa de Farrington, e a palidez da compleição de Weathers mudou para a cor da peônia. Suas mãos e braços tremiam com o esforço. Depois de uma longa batalha Weathers derrubou de novo a mão do oponente lentamente na mesa. Houve um murmúrio de aplausos dos espectadores. O garçom, que estava de pé ao lado da mesa, balançou sua cabeça vermelha na direção do vencedor e disse com estúpida familiaridade:

“Ah! Mandou muito bem!”

“O que diabos você entende disso?” disse Farrington ferozmente, virando-se para o homem. “Que que você quer meter a matraca aqui?”

“Calma, calma!” disse O’Halloran, observando a expressão violenta na cara de Farrington. “Vamos fechar a conta, rapazes. Só a saideira e depois vamos embora.”


 

Um homem com o rosto muito irritadiço estava de pé na esquina da ponte O’Connell esperando o pequeno bonde de Sandymount para levá-lo para casa. Ele estava repleto de raiva ardente e desejo de vingança. Se sentia humilhado e descontente; nem ao menos se sentia bêbado; e só tinha dois centavos no bolso. Ele amaldiçoava tudo. Se lascara no escritório, penhorara seu relógio, gastara todo o seu dinheiro; e nem ao menos ficara bêbado. Começou a sentir sede novamente e ansiava por voltar novamente ao fedor quente da taverna. Ele perdera sua reputação de homem forte, tendo sido derrotado duas vezes por um mero garoto. Seu coração se enchia de fúria e, quando ele pensou na mulher com o chapéu largo que esbarrara nele e dissera Perdão!, sua fúria quase o sufocou.

O bonde o deixou na rua Shelbourne e ele arrastou seu grande corpo pela sombra do muro do quartel. Detestava voltar para casa. Quando entrou pela porta lateral viu a cozinha vazia e o fogo do fogão quase apagado. Berrou na direção da escadaria.

“Ada! Ada!”

Sua esposa era uma mulher pequena e de rosto fino que maltratava o marido quando estava sóbrio e era maltratada por ele quando ele estava bêbado. Tinham cinco filhos. Um garotinho desceu correndo a escadaria.

“Quem está aí?” disse o homem, tentando enxergar na escuridão.

“Eu, pai.”

“Quem é você? Charlie?”

“Não, pai. Tom.”

“Cadê a sua mãe?”

“Ela foi na capela.”

“É mesmo…. Ela lembrou de deixar algum jantar pra mim?”

“Sim, pai. Eu –”

“Acenda o lampião. Onde já se viu, deixar isso aqui nessa escuridão. As outras crianças estão na cama?”

O homem sentou pesadamente em uma das cadeiras enquanto o garoto acendia o lampião. Ele começou a imitar o sotaque enfadonho do filho, murmurando para si: “Na capela. Sim, na capela!” Quando o lampião foi aceso ele bateu com o punho na mesa e gritou:

“O que tem pro meu jantar?”

“Eu vou… cozinhar ele, pai,” disse o garotinho.

O homem se ergueu furioso e apontou o fogo.

“Com esse fogo! Você deixou o fogo apagar! Por Deus, vou te ensinar a deixar isso acontecer de novo!”

Ele deu um passo na direção da porta e pegou a bengala que estava atrás dela.

“Vou te ensinar a deixar o fogo apagar!” ele disse, arregaçando a manga para deixar o braço livre.

O garotinho gritou “Não, pai!” e correu choramingando ao redor da mesa, mas o homem o seguiu e o agarrou pelo casaco. O garotinho olhou desesperado em volta mas, vendo que não havia escapatória, caiu de joelhos.

“Agora você vai deixar o fogo apagar da próxima vez!” disse o homem, acertando-o vigorosamente com a bengala. “Tome isso, seu fedelho!”

O garoto soltou um guincho de dor quando a bengala cortou sua coxa. Juntou as mãos no ar e sua voz vacilou de pavor.

“Não, pai!” ele gritou. “Não me bate, pai! E eu… Eu vou rezar uma Ave Maria pelo senhor… Eu vou rezar uma Ave Maria pelo senhor, pai, se você não me bater… Eu vou rezar uma Ave Maria….”


Notas do tradutor

NT¹ – A cabine privada (snug, no original), era um espaço privativo de alguns pubs da época, com acesso ao balcão por uma janela de vidro opaco. A cerveja servida no snug era mais cara e ninguém podia ver os clientes lá dentro. Era utilizada por aqueles que não queriam ser vistos bebendo no pub, como mulheres (não eram vistas com bons olhos se frequentassem os pubs), policiais, padres, amantes e, no caso do conto de Joyce, um funcionário durante o expediente – https://en.wikipedia.org/wiki/Pub#Snug

NT² – Plain Porter é uma cerveja escura, fabricada no Reino Unido e na Irlanda (há diferenças na seleção dos maltes entre os países) que tem um agradável sabor amargo e um elevado teor de ácido carbônico. A cerveja stout, tipo de cerveja escura cuja marca mais vendida atualmente é a Guiness, é um tipo mais forte de cerveja porter; a plain porter é mais leve – https://pt.wikipedia.org/wiki/Porter_(cerveja)

NT³ – A semente de cominho (caraway seed, no original) era utilizada para mascarar o cheiro da cerveja no hálito – http://crossref-it.info/textguide/dubliners/38/2796

NT¹¹ – Cotação monetária da época: 1 xelim = 12 centavos/pennies. 1 coroa = 5 xelins (60 centavos/pennies ou 1/4 de um pound). 1 pound = 240 centavos/pennies – http://resources.woodlands-junior.kent.sch.uk/customs/questions/moneyold.htm

NT¹² – Apollinaris é uma água mineral gaseificada produzida na Alemanha – https://en.wikipedia.org/wiki/Apollinaris_(water)


james joyce

James Augustine Aloysius Joyce (1882 – 1941) foi um escritor irlandês. Considerado um dos mais influentes escritores do século 20 e um expoente do modernismo, utilizou uma gama enorme de técnicas literárias, produzindo contos, poemas e romances. Retratou sobretudo o seu país, a Irlanda, e mais especificamente sua cidade natal, Dublin. Dublinenses (1914), um livro contendo 15 contos ambientados na cidade, foi publicado após anos de conflito com editores que insistiam em mudar detalhes das narrativas. Joyce retratou nele diversos tipos citadinos, de variadas idades e classes sociais, profissões e ambições, pintando um grande quadro da Dublin dos primeiros anos do século passado. Nessas histórias apostava no conceito de epifania, um momento iluminador de entendimento ou de mudança na vida do personagem. Contrapartes é o nono conto do livro.

Além de Dublinenses, Joyce publicou três volumes de poemas, uma peça de teatro, críticas, peças jornalísticas diversas e outros contos (os últimos postumamente). Mas seus trabalhos mais reconhecidos são sem dúvida os três romances que se seguiriam, mais notadamente Ulisses (1922), onde em extremo detalhe narra um dia na vida do personagem Leopold Bloom, utilizando variadas técnicas narrativas e uma linguagem inventiva, numa história que remete aos acontecimentos vividos por Ulisses/Odisseu na tragédia grega Odisseia. Ulisses é um livro longo (cerca de mil páginas) e denso, embora seja considerado legível por grande parcela do público. Não foi o caso do seu último trabalho, Finnegan’s Wake (1939), onde levou a extremos técnicos a linguagem, criando uma narrativa em diferentes planos que utilizou colagens de diversas línguas para formar palavras e não se ateve a um enredo delineado ou à costumeira construção de personagens. Wake foi odiado por muitos leitores e críticos e considerado uma obra-prima, ainda que críptica, por outros. Já Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916), menos experimental que os trabalhos posteriores, buscou inspiração na própria experiência de vida do autor para elaborar a transformação de um jovem de inclinações artísticas em um artista maduro.

Joyce foi casado com Nora Barnacle e teve um casal de filhos. Embora a Irlanda seja o foco central de sua obra, ele morou a maior parte da vida adulta fora do país. Saiu aos 22 anos e residiu principalmente em Trieste, Zurique e Paris. Deu aulas de inglês para falantes nativos de outras línguas e complementou a renda com serviços variados. Mais velho, com o prestígio literário estabelecido, pôde se dedicar integralmente à escrita com a ajuda de patrocinadores da sua arte, como a inglesa Harriet Shaw Weaver. Teve problemas sérios nos olhos, passando por várias cirurgias para corrigi-los, chegando a utilizar um tapa-olho em diversas ocasiões. Faleceu em Zurique, na Suíça, aos 58 anos, incapaz de se recuperar de uma cirurgia para sanar uma úlcera perfurada. Possui uma fortuna crítica extensíssima, tento sido estudado e apontado como grande influência por autores como Nabokov, Borges, Beckett (que o auxiliou na produção do Wake), Burgess e muito outros. No Brasil, a maior parte da sua produção foi traduzida, algumas delas diversas vezes. Para mais detalhes, confira o levantamento feito por Denise Bottmann. Desde 2011 em domínio público, as histórias de Joyce também podem ser encontradas na internet, no idioma original.

A Duplicidade de Hargraves – O. Henry

Originalmente publicado em fevereiro de 1902 na revista Junior Munsey.
Conto em domínio público, disponível em inglês.
Tradução: Santiago Santos, fevereiro de 2016 | 4.769 palavras

Quando o Major aposentado Pendleton Talbot, de Mobile, e sua filha, a senhorita Lydia Talbot, vieram residir em Washington, eles selecionaram uma casa que ficava a cinquenta metros de uma das avenidas mais quietas para se hospedar. Era uma construção de tijolo de estilo antigo, com um pórtico sustentado por dois altos pilares brancos. O jardim era sombreado por jatobás e olmos imponentes, e durante a estação uma catalpa chovia suas flores brancas e rosadas na grama. Fileiras de arbustos altos e aparados delineavam a cerca e as trilhas. Eram o estilo e o aspecto sulista do lugar que agradavam os olhos dos Talbots.

Nessa agradável pensão privada eles alugaram quartos, incluindo um gabinete de estudo para o Major Talbot, que estava adicionando os capítulos finais do seu livro “Anedotas e Reminiscências do Exército e da Prática Jurídica do Alabama”.

O Major Talbot era do antigo, antigo sul. O presente tinha pouco interesse ou excelência aos seus olhos. Sua mente vivia naquele período antes da Guerra Civil*¹, quando os Talbots eram donos de milhares de acres de boa terra algodoeira e de escravos para lavrá-las; quando a mansão da família era palco de hospitalidade principesca, e atraía seus convidados da aristrocracia do sul. Daquele período ele trouxera todo o seu velho orgulho e escrúpulos de honra, uma polidez antiquada e meticulosa, e (era de se imaginar) seu guarda-roupa.

Tais roupas com certeza não haviam sido feitas nos últimos cinquenta anos. O Major era alto, mas sempre que fazia aquela maravilhosa e arcaica genuflexão que chamava de reverência, as quinas da sua sobrecasaca varriam o chão. A vestimenta era uma surpresa até mesmo em Washington, onde há muito haviam deixado de se intimidar pelas sobrevestes e cartolas de abas largas dos congressistas do sul. Um dos pensionistas apelidou a indumentária de “Pai Hubbard*²”, e ela era certamente alta na cintura e cheia no saiote.

Mas o Major, com todas as suas roupas excêntricas, sua imensa área de camisa destacável trançada e esfiapada, e a pequena gravata de laço preto com o nó sempre se desfazendo em um dos lados, era apreciado e querido na seleta pensão da Sra. Vardeman. Alguns dos jovens escrivães muitas vezes “lhe davam corda”, como diziam, incitando-o a falar sobre o assunto mais caro a ele — as tradições e a história da sua querida terra sulista. Durante essas conversas ele citava espontaneamente do seu “Anedotas e Reminiscências”. Mas eram muito cuidadosos de não o deixar perceber suas intenções, pois apesar dos seus sessenta e oito anos ele era capaz de deixar o mais corajoso deles desconfortável com a encarada fixa daqueles penetrantes olhos cinzas.

A senhorita Lydia era uma velha solteirona rechonchuda e pequena de trinta e cinco anos, com o cabelo puxado e bem amarrado que a fazia parecer ainda mais velha. Ela também era antiquada; mas a glória do pré-guerra não radiava dela como acontecia com o Major. Possuía um senso comum parcimonioso; e era ela quem cuidava das finanças da família, e recebia os credores quando havia contas a pagar. O Major considerava contas de hospedagem e lavanderia incômodos desprezíveis. Elas continuavam chegando tão persistentemente e com tanta frequência. Por quê, o Major queria saber, elas não podiam ser acumuladas e pagas em única prestação num momento conveniente — digamos, quando o “Anedotas e Reminiscências” tivesse sido publicado e pago? A senhorita Lydia prosseguia calmamente com sua costura e dizia, “Nós pagaremos conforme gastamos enquanto o dinheiro durar, e depois talvez eles tenham que vender a crédito.”

A maioria dos pensionistas da Sra. Vardeman ficava fora durante o dia, sendo quase todos escrivães e homens de negócio; mas havia um deles que ficava pela casa bastante tempo entre a manhã e a noite. Este era um jovem chamado Henry Hopkins Hargraves — todos na casa o chamavam pelo nome completo — que estava contratado por um dos populares teatros de vaudeville*³. O vaudeville alcançara uma posição tão respeitável nos últimos anos, e o Sr. Hargraves era uma pessoa tão modesta e bem educada, que a Sra. Vardeman não havia encontrado objeção para incluí-lo em sua lista de pensionistas.

No teatro, Hargraves era conhecido como um comediante de dialetos completo, possuindo um vasto repertório de alemão, irlandês e sueco, e era especialista nas gírias dos negros. Mas o Sr. Hargraves era ambicioso, e frequentemente falava de seu grande desejo de prosperar na comédia legítima.

O jovem parecia ter grande afeição pelo Major Talbot. Sempre que este senhor começava suas reminiscências do sul, ou repetia alguma das anedotas mais animadas, Hargraves estava por perto, o mais atento dentre seus ouvintes.

Por algum tempo o Major ficou inclinado a desencorajar as abordagens do “atorzinho de teatro”, como ele o chamava privadamente; mas logo os modos agradáveis e a apreciação indúbita das histórias do velho senhor o conquistaram por completo.

Não demorou muito para que os dois fossem como velhos companheiros. O Major separava as tardes para ler um pouco do manuscrito do seu livro para ele. Durante as anedotas Hargraves nunca deixava de rir exatamente no ponto certo. O Major se sentiu encorajado a declarar um dia à senhorita Lydia que o jovem Hargraves possuía uma percepção notável e um respeito gratificante pelo velho regime. E quando chegava a hora de falar daqueles velhos dias — se o Major Talbot gostava de falar, o Sr. Hargraves ficava extasiado de ouvir.

Como quase todas as velhas pessoas que falam do passado, o Major adorava se deter em detalhes. Ao descrever os esplêndidos, quase régios, dias dos velhos plantadores, ele hesitava até que tivesse lembrado o nome do negro que segurava o seu cavalo, ou a data exata de certos pequenos acontecimentos, ou o número de fardos de algodão coletados em tal ano; mas Hargraves nunca ficava impaciente ou perdia o interesse. Pelo contrário, ele fazia perguntas numa variedade de assuntos conectados com a vida daquele tempo, e nunca falhava em extrair respostas diligentes.

As caças às raposas, as ceias de gambá{*4}, os arrasta-pés e jubileus no alojamento dos negros, os banquetes no salão da sede da fazenda, quando convites viajavam por oitenta quilômetros; as ocasionais contendas com proprietários vizinhos; o duelo do Major com Rathbone Culbertson a respeito de Kitty Chalmers, que depois se casou com um Thwaite da Carolina do Sul; e as corridas privadas de iate por quantias fabulosas na Baía Mobile; as crenças excêntricas, hábitos incautos e virtudes leais dos antigos escravos — todos esses eram assuntos que mantiam tanto o Major quanto Hargraves absorvidos por horas a fio.

Algumas vezes, à noite, quando o jovem estava subindo a escadaria para o quarto depois que seu turno no teatro acabara, o Major aparecia na porta do seu gabinete e se curvava num aceno para ele. Entrando, Hargraves encontrava uma pequena mesa posta com um decantador, uma tigela com açúcar, frutas e um punhado de hortelã verde e fresca.

“Me ocorreu,” o Major começava – ele era sempre cerimonioso — “que talvez você tenha achado seus deveres no — no seu local de trabalho — suficientemente árduos para lhe permitir, Sr. Hargraves, apreciar o que o poeta poderia muito bem ter em mente quando escreveu sobre o ‘doce restaurador da cansada natureza{*5},’ — um dos nossos juleps{*6} sulistas.”

Era um fascínio para Hargraves observá-lo preparar aquilo. Ele exibia maestria artística quando começava, e nunca variava o processo. Com que delicadeza macerava o hortelã; com que minúcia requintada estimava os ingredientes; com que cuidado exagerado tampava o composto com a fruta escarlate brilhando contra a borda verde escura! E então a hospitalidade e graça com que o servia, depois que os talos de aveia selecionados estivessem mergulhados nas suas profundezas tilintantes!

Depois de cerca de quatro meses em Washington, a senhorita Lydia descobriu uma manhã que eles estavam quase sem dinheiro. O “Anedotas e Reminiscências” fora completado, mas os editores não haviam se atirado nas jóias reunidas do senso e da sabedoria do Alabama. O aluguel de uma pequena casa que eles ainda possuíam em Mobile estava dois meses atrasado. O dinheiro para a pensão do mês acabaria em três dias. A senhorita Lydia chamou seu pai para uma consulta.

“Sem dinheiro?” ele disse, com um olhar surpreso. “É muito irritante ser atormentado tão frequentemente por essas quantias triviais. Realmente, eu –”

O Major procurou em seus bolsos. Ele achou apenas uma nota de dois dólares, que devolveu ao bolso do colete.

“Preciso cuidar disso com urgência, Lydia,” ele disse. “Por gentileza pegue meu guarda-chuva e eu descerei à cidade imediatamente. O congressista do nosso distrito, o General Fulghum, me assegurou alguns dias atrás que usaria sua influência para fazer com que meu livro fosse publicado numa data próxima. Eu irei ao seu hotel agora e verei que medida foi tomada.”

Com um pequeno e triste sorriso a senhorita Lydia observou-o abotoar seu “Pai Hubbard” e partir, parando na porta, como ele sempre fazia, para uma profunda reverência.

No começo da noite ele retornou. Pelo jeito o congressista Fulghum havia encontrado o editor que estava com o manuscrito do Major para leitura. Essa pessoa dissera que se as anedotas, etc., fossem cuidadosamente cortadas pela metade, para assim eliminar o preconceito regional e de classe com que o livro estava infestado do começo ao fim, ele poderia considerar sua publicação.

O Major estava dominado por um acesso colérico, mas recobrou a equanimidade, de acordo com seu código de conduta, assim que se viu na presença da senhorita Lydia.

“Precisamos de dinheiro,” disse a senhorita Lydia, com uma pequena ruga acima do nariz. “Me dê os dois dólares e eu enviarei um telegrama ao tio Ralph para conseguir um pouco hoje à noite.”

O Major retirou um pequeno envelope do bolso superior do seu colete e o jogou na mesa.

“Talvez tenha sido imprudente,” ele disse, moderado, “mas a quantia era tão somente nominal que comprei ingressos para o teatro hoje à noite. É um novo drama de guerra, Lydia. Pensei que você ficaria satisfeita de testemunhar essa primeira apresentação em Washington. Me disseram que o Sul tem um ótimo tratamento na peça. Confesso que eu mesmo gostaria de ver essa performance.”

A senhorita Lydia jogou as mãos para cima em silêncio desesperado.

Ainda assim, já que os ingressos estavam comprados poderiam muito bem ser usados. Então, naquela noite, ao sentarem no teatro ouvindo a animada abertura, até a senhorita Lydia se permitiu relegar seus problemas, por ora, a segundo plano. O Major, em trajes impecáveis, com seu casaco extraordinário evidente apenas onde era rigorosamente abotoado, e seu cabelo branco enrolado suavemente, parecia muito fino e distinto. A cortina subiu no primeiro ato de “Uma Flor de Magnólia,” revelando o cenário de uma típica plantação sulista. O Major Talbot demonstrou algum interesse.

“Ah, veja!” exclamou a senhorita Lydia, cutucando o braço dele e apontando o seu programa.

O Major colocou os óculos e leu a linha no elenco de personagens que o dedo dela indicava.

Cel. Webster Calhoun…H. Hopkins Hargraves.

“É o nosso Sr. Hargraves,” disse a senhorita Lydia. “Deve ser a sua primeira apresentação no que ele chama de ‘legítimo.’ Estou tão feliz por ele.”

Foi somente no segundo ato que o Cel. Webster Calhoun apareceu no palco. Quando ele entrou o Major Talbot deu uma fungada audível, o encarou e pareceu congelar. A senhorita Lydia entoou um guincho curto e ambíguo e amassou o programa na mão. Pois o Coronel Calhoun fora produzido para se parecer tanto com o Major Talbot quanto um pêssego se parece com outro. O cabelo longo, branco e fino, encaracolado nas pontas, o nariz aristocrático em formato de bico, a amassada, larga e esfiapada camisa destacável, a gravata de laço, com o nó praticamente sob a orelha, estavam quase exatamente duplicados. E então, para completar a imitação, ele usava uma cópia do supostamente inigualável casaco do Major. Colarinho alto, folgado, cintura altíssima, saiote longo, sobrando trinta centímetros a mais na frente que atrás, a vestimenta não poderia ter sido inspirada em nenhum outro modelo. Daquele momento em diante, o Major e a senhorita Lydia ficaram enfeitiçados nas cadeiras, e viram a representação falsificada de um orgulhoso Talbot “arrastado,” como o Major se expressaria posteriormente, “pelo lamaçal calunioso de um palco corrupto.”

O Sr. Hargraves usara bem suas oportunidades. Ele captara perfeitamente as pequenas idiossincrasias da fala do Major, o sotaque e a entonação e a afetação pomposa — exagerando todas para os propósitos do palco. Quando ele fazia aquela admirável reverência que o Major ingenuamente imaginava ser o ápice de todas as saudações, a audiência irrompia em uma inesperada salva de aplausos calorosos.

A senhorita Lydia permanecia imóvel, sem coragem de olhar para o pai. Às vezes a mão mais próxima dele era colocada contra a bochecha, como se para esconder o sorriso que, apesar da desaprovação, ela não conseguia suprimir inteiramente.

A culminação da audaciosa imitação de Hargraves aconteceu no terceiro ato. A cena é aquela em que o coronel Calhoun entretém alguns dos fazendeiros vizinhos no seu “covil.”

De pé diante de uma mesa no centro do palco, com seus amigos agrupados ao redor, ele recita aquele monólogo inimitável e interminável, tão famoso em “Uma Flor de Magnólia”, ao mesmo tempo em que habilmente faz juleps para o grupo.

O Major Talbot, quieto mas branco de indignação, ouviu suas melhores histórias recontadas, suas teorias de estimação e hobbies expostas e esmiuçadas, e o sonho do “Anedotas e Reminiscências” apresentado, exagerado e deturpado. Sua narrativa favorita — aquela do duelo com Rathbone Culbertson — não foi omitida, e foi proferida com mais fogo, egotismo e entusiasmo do que o próprio Major colocara nela.

O monólogo foi concluído com uma singular, deliciosa e astuta palestra sobre a arte de preparar um julep, ilustrada pelo ato. Aqui a ciência delicada porém pomposa do Major Talbot foi reproduzida nos mínimos detalhes — de sua elegante manipulação das folhas perfumadas — “a milésima parte de um grão de pressão a mais, senhores, e vocês extrairão o amargor, ao invés do aroma, dessa planta que é uma dádiva dos céus” — até a cuidadosa seleção dos talos de aveia.

No encerramento da cena o público soltou um tumultuoso rugido de apreciação. A representação do tipo era tão exata, tão segura e detalhada, que os protagonistas da peça foram esquecidos. Depois de repetidas convocações, Hargraves veio à frente da cortina e fez uma reverência, seu rosto juvenil cintilante e corado com o reconhecimento do sucesso.

Enfim a senhorita Lydia se virou e olhou o Major. Suas narinas delgadas trabalhavam como as guelras de um peixe. Ele colocou as duas mãos trêmulas nos braços da sua cadeira para levantar.

“Nós iremos, Lydia,” ele disse, sufocado. “Isso é uma profanação — abominável.”

Antes que pudesse se erguer, ela o puxou de volta para o seu assento. “Nós ficaremos aqui,” ela declarou. “Você quer fazer propaganda para a cópia exibindo o casaco original?” Então eles ficaram até o fim.

O sucesso de Hargraves deve tê-lo mantido acordado até tarde naquela noite, pois nem no café da manhã nem no almoço ele apareceu.

Por volta das três da tarde ele bateu na porta do gabinete do Major Talbot. O Major a abriu e Hargraves entrou com as mãos cheias dos jornais matutinos — muito cheio do seu triunfo para perceber algo de incomum na conduta do Major.

“Eu dei o meu melhor para eles ontem à noite, Major,” ele começou, exultantemente. “Tive minha oportunidade e, creio, a aproveitei. Aqui está o que o Post disse:

Sua concepção e representação do velho coronel sulista, com sua grandiloquência absurda, sua indumentária excêntrica, seu singular idioma e fraseado, seu orgulho familiar carcomido pelo tempo e seu coração verdadeiramente gentil, senso de honra fastidioso e amável simplicidade, é a melhor delineação do papel de um personagem nos palcos atualmente. O casaco vestido pelo Coronel Calhoun é em si nada menos que um toque de gênio. O Sr. Hargraves capturou seu público.

“Como soa isso, Major, para uma estreia?”

“Eu tive a honra” — a voz do Major soava ameaçadoramente frígida — “de testemunhar sua muito notável performance, senhor, ontem à noite.”

Hargraves pareceu desconcertado.

“Você estava lá? Eu não sabia que você ia — Eu não sabia que você se importava com teatro. Ah, quero dizer, Major Talbot,” ele exclamou, francamente, “não se sinta ofendido. Eu admito que peguei várias nuances suas que me ajudaram maravilhosamente no papel. Mas é um tipo, você sabe — não um indivíduo. A forma que o público reagiu mostra isso. Metade dos patronos daquele teatro são sulistas. Eles reconheceram isso.”

“Sr. Hargraves,” disse o Major, que continuara de pé, “você me impingiu um insulto imperdoável. Você parodiou a minha pessoa, traiu minha confiança grosseiramente, e abusou da minha hospitalidade. Se eu imaginasse que você possuísse a menor concepção do que é o manual de conduta de um cavalheiro, ou qualquer coisa que se assemelhe a isso, eu o chamaria lá fora, senhor, mesmo velho como sou. Eu lhe pedirei que saia do quarto, senhor.”

O ator ficou ligeiramente aturdido, e pareceu ter dificuldade de entender o sentido pleno das palavras do velho homem.

“Eu lamento sinceramente que você tenha se ofendido,” ele disse, pesaroso. “Aqui no norte nós não enxergamos as coisas como vocês. Eu conheço homens que comprariam metade da casa de espetáculos para ter suas personalidades encenadas no palco a fim de que o público as reconhecesse.”

“Eles não são do Alabama, senhor,” disse o Major, altivo.

“Talvez não. Eu tenho uma boa ótima memória, Major; deixe-me citar algumas linhas do seu livro. Em resposta a um brinde em um banquete oferecido em — Milledgeville, creio — você pronunciou, e pretende publicar, essas palavras:

O homem nortenho não possui, em última instância, emoção ou cordialidade exceto quando esses sentimentos podem ser desviados para seu próprio lucro pessoal. Ele sofrerá sem ressentimento qualquer ofensa feita à sua própria honra ou à de seus familiares que não carregue consigo a consequência da perda pecuniária. Em sua caridade, ele dá com uma mão liberal; mas o ato deve ser anunciado com a trombeta e gravado em bronze.

“Você acha que esse retrato é mais justo do que aquele que você viu do Coronel Calhoun ontem à noite?”

“A descrição,” disse o Major, franzindo as sobrancelhas, “é — não é infundada. Algum exag — latitude deve ser permitida no discurso público.”

“E na atuação nos palcos,” replicou Hargraves.

“Este não é o ponto,” persistiu o Major, inflexível. “Aquilo foi uma caricatura pessoal. Eu positivamente me recuso a deixar isso passar, senhor.”

“Major Talbot,” disse Hargraves, com um sorriso vitorioso, “eu gostaria que você me compreendesse. Quero que você saiba que eu nunca sonhei em lhe insultar. Na minha profissão, toda a vida pertence a mim. Eu pego o que quero, e o que posso, e devolvo diante da ribalta. Agora, se me permite, vamos esquecer isso. Eu vim vê-lo a respeito de outra coisa. Temos sido muito bons amigos por alguns meses, e vou tomar o risco de ofendê-lo novamente. Sei que você está sem dinheiro — não se preocupe com a forma como descobri; uma pensão não é lugar para guardar tais assuntos em segredo — e quero que me deixe ajudá-lo a sair desse aperto. Eu mesmo já estive nessa posição várias vezes. Tenho ganhado um salário razoável toda a temporada, e guardei algum dinheiro. Posso lhe dispensar duzentos — ou até mais — até você –”

“Pare!” ordenou o Major, com seu braço estendido. “Parece que meu livro não mentiu, no fim das contas. Você acha que seu bálsamo de dinheiro irá curar as dores da honra. Sob circunstância alguma eu aceitaria um empréstimo de um mero conhecido; e quanto a você, senhor, eu morreria de fome antes de considerar a sua oferta insultante de um ajuste financeiro cujas circunstâncias discutimos. Peço licença para repetir minha solicitação com relação a você deixar o apartamento.”

Hargraves saiu sem dizer outra palavra. Ele também saiu da casa no mesmo dia, se mudando, como a Sra. Vardeman explicou durante o jantar, para mais perto da vizinhança do teatro do centro, onde “Uma Flor de Magnólia” estava programada para toda a semana.

Crítica era a situação do Major Talbot e da senhorita Lydia. Não havia em Washington ninguém cujos escrúpulos do Major permitiam solicitar um empréstimo. A senhorita Lydia escreveu uma carta ao tio Ralph, mas era duvidoso que os negócios constritos do parente o permitissem fornecer ajuda. O Major foi forçado a se desculpar com a Sra. Vardeman a respeito do pagamento atrasado da pensão, se referindo a “aluguéis inadimplentes” e “remessas atrasadas” num esforço deveras confuso.

A salvação veio de uma fonte completamente inesperada.

No fim de uma tarde a empregada apareceu e anunciou um velho homem de cor que queria ver o Major Talbot. O Major pediu que ele fosse enviado ao seu gabinete. Logo um negro apareceu na porta, com seu chapéu na mão, fazendo uma reverência e arrastando um pé desajeitado. Ele estava decentemente vestido num terno preto folgado. Seus sapatos grandes e grosseiros brilhavam com um lustre metálico que sugeria polidor de fogão. Sua penugem crespa era cinza — quase branca. Depois da meia idade, é difícil estimar a idade de um negro. Este poderia ter visto tantos anos quanto o Major Talbot.

“Suponho que ocê não me conheça, sinhô Pendleton,” foram suas primeiras palavras.

O Major levantou e se aproximou, reconhecendo a antiga e familiar denominação. Era um dos negros da velha plantação, sem dúvida; mas eles haviam se espalhado por todos os cantos, e ele não conseguia lembrar da voz ou do rosto.

“Eu creio que não,” ele disse, amigavelmente — “a não ser que você auxilie minha memória.”

“Ocê não alembra do Mose da Cindy, sinhô Pendleton, que ‘migrou’ assim que cabô a guerra?”

“Espere um momento,” disse o Major, esfregando a testa com as pontas dos dedos. Ele adorava relembrar todas as coisas conectadas com aqueles dias estimados. “O Mose da Cindy,” ele refletiu. “Você trabalhava com os cavalos — domando os potros. Sim, eu lembro agora. Depois da rendição, você assumiu o nome de — não me ajude — Mitchell, e foi para o oeste — para Nebraska.”

“Sim sinhô, sim sinhô,” — a face do velho se esticou num sorriso deliciado — “é ele, é isso. Newbraska. Sou eu — Mose Mitchell. Velho tio Mose Mitchell, sô chamado agora. O velho sinhô, seu pai, me deu um par daquelas mulas quando me fui pra me ajudá a começá. Ocê alembra daqueles potros, sinhô Pendleton?”

“Não consigo me lembrar dos potros,” disse o Major. “Você sabe que eu me casei no primeiro ano da guerra e morava na casa do velho Follinsbee. Mas se acomode, se acomode, tio Mose. Estou feliz em vê-lo. Espero que você tenha prosperado.”

Tio Mose pegou uma cadeira e pousou o chapéu cuidadosamente no chão ao seu lado.

“Sim sinhô; nos últimos tempos fiquei bem de vida. Quando cheguei no Newbraska, o povo veio me rodeá pra vê as mulas. Eles nunca tinham visto mulas assim no Newbraska. Vendi as mulas por trezentos dólares. Sim sinhô — trezentos.

“Então eu abri uma oficina de ferrêro, sinhô, e fiz um dinheiro e comprei umas terras. Eu e minha velha cabamos criando sete crianças, e todas indo bem a não ser por dois que morreram. Um ano atrás a ferrovia chegô e deu um preço na minha terra, e então, sinhô Pendleton, tio Mose agora vale onze mil dólares em dinheiro, propriedades e terra.”

“Fico contente de ouvir isso,” disse o Major, empolgado. “Muito contente.”

“E aquele pequeno bebê do sinhô, sinhô Pendleton — o que ocê colocou o nome de senhorita Liddy — aposto que aquela miudinha cresceu tanto que agora ninguém mais reconhece ela.”

O Major se aproximou da porta e chamou: “Lydia, querida, pode vir aqui?”

A senhorita Lydia, parecendo bastante crescida e um tanto preocupada, saiu do quarto dela.

“Diacho, agora! Não disse? Eu soubia que aquele bebê ia tê crescido e ganhado massa. Ocê não alembra do tio Mose, menina?”

“Este é o Mose da tia Cindy, Lydia,” explicou o Major. “Ele deixou Sunnymead e foi para o oeste quando você tinha dois anos.”

“Bem,” disse a senhorita Lydia, “eu dificilmente conseguiria lembrar de você, tio Mose, naquela idade. E, como você diz, eu ‘cresci e ganhei massa’, e fui abençoada há muito tempo. Mas estou feliz de vê-lo, mesmo que eu não possa lembrar de você.”

E ela estava. E o Major também estava. Algo vivo e tangível viera para conectá-los ao passado feliz. Os três sentaram e conversaram sobre os tempos antigos, o Major e tio Mose corrigindo ou auxiliando um ao outro enquanto relembravam os cenários e os dias da plantação.

O Major inquiriu o que o velho fazia tão distante de casa.

“Tio Mose é um eclesiástico,” ele explicou, “da grande convenção Batista nessa cidade. Eu nunca preguei, mas sendo um ancião residente da igreja, e capaz de pagá minhas próprias despesas, eles me mandaram.”

“E como você soube que nós estávamos em Washington?” inquiriu a senhorita Lydia.

“Tem um homi de cor que trabalha no hotel onde eu tô hospedado, e que veio de Mobile. Ele me disse que viu o sinhô Pendleton saindo daqui dessa pensão uma manhã.”

“O motivo por modo de qual eu vim,” continuou tio Mose, enfiando a mão no bolso — “além de rever o pessoal de casa — foi pra pagá o sinhô Pendleton o que eu devo a ele.”

“Me deve?” disse o Major, surpreso.

“Sim sinhô — trezentos dólares.” Ele ofereceu ao Major um maço de notas. “Quando eu fui embora o velho sinhô disse: ‘Leve essas mulas, Mose, e, se acontecer de ocê se tornar capaz, pague por elas’. Sim sinhô — essas foram as palavras dele. A guerra deixô o velho sinhô pobre. O velho sinhô tando morto há muito tempo, a dívida descende pro sinhô Pendleton. Trezentos dólares. Tio Mose é mais que capaz de pagá por elas agora. Quando aquela ferrovia comprô minha terra eu consegui o suficiente pra pagá pelas mulas. Conte o dinheiro, sinhô Pendleton. Foi por esse tanto que eu vendi aquelas mulas. Sim sinhô.”

Havia lágrimas nos olhos do Major Talbot. Ele apertou a mão do tio Mose e pousou a outra no seu ombro.

“Meu caro, fervoroso e velho serviçal,” ele disse numa voz trêmula, “não me importo de lhe dizer que o ‘sinhô Pendleton’ gastou seu último e fatídico dólar uma semana atrás. Nós aceitaremos o dinheiro, tio Mose, já que, de certa forma, é um tipo de pagamento, assim como um símbolo de lealdade e devoção ao antigo regime. Lydia, minha querida, pegue o dinheiro. Você é mais capacitada que eu para decidir a melhor forma de usá-lo.”

“Pegue, querida,” disse tio Mose. “Ele pertence a ocês agora. É o dinheiro de Talbot.”

Depois que o tio Mose saiu, a senhorita Lydia chorou bastante — de alegria; e o Major virou o rosto para um canto e fumou seu cachimbo de barro vulcanicamente.

Nos dias seguintes a paz e a tranquilidade dos Talbots foi restaurada. A face da senhorita Lydia perdeu sua expressão de preocupação. O Major apareceu com uma nova sobrecasaca, e parecia uma estátua de cera personificando a memória de sua era de ouro. Outro editor que leu o manuscrito do “Anedotas e Reminiscências” pensou que, com poucos retoques e uma suavizada nos principais pontos, ele poderia produzir um volume realmente brilhante e vendável. De modo geral, a situação era confortável, e não sem o toque de esperança que é muitas vezes mais doce que bênçãos inesperadas.

Um dia, cerca de uma semana depois do episódio de sorte, uma empregada trouxe uma carta para a senhorita Lydia no seu quarto. O carimbo postal mostrava que era de Nova York. Não conhecendo ninguém lá, a senhorita Lydia, numa leve palpitação de surpresa, sentou em sua mesa e abriu a carta com a tesoura. Isso foi o que ela leu:

Cara Senhorita Talbot:

Achei que você ficaria contente de saber da minha boa sorte. Eu recebi e aceitei uma oferta de duzentos dólares por semana de uma companhia de teatro de Nova York para interpretar o Coronel Calhoun em “Uma Flor de Magnólia.”

Há outra coisa que gostaria que você soubesse. Talvez seja melhor não contar para o Major Talbot. Eu estava ansioso para compensá-lo pela grande ajuda que ele me deu ao estudar para o papel, e pelo mau humor que o afligiu por causa disso. Ele se recusou a me deixar fazer, então eu fiz de qualquer jeito. Os trezentos não me fazem falta.

Sinceramente seu,

H. Hopkins Hargraves,

P.S. O que achou da minha interpretação do tio Mose?

O Major Talbot, passando pelo corredor, viu a porta da senhorita Lydia aberta e parou.

“Alguma carta para nós essa manhã, Lydia, querida?” ele perguntou.

A senhorita Lydia escondeu a carta sob uma dobra do seu vestido.

“A Gazeta de Mobile chegou,” ela disse, prontamente. “Está na sua mesa no gabinete.”


Notas do tradutor

NT*¹ – A Guerra Civil Norte-Americana (também conhecida como Guerra da Secessão) foi travada entre 1861 e 1865, tendo como estopim a abolição da escravidão. O então candidato à presidência Abraham Lincoln, de plataforma pró-abolicionista, foi eleito sobretudo pelo eleitorado do norte do país. Em resposta, antes mesmo que assumisse a Casa Branca em março de 1961, sete estados escravagistas do sul (outros quatro foram incluídos posteriormente), fortes produtores e exportadores de algodão, se uniram para formar os Estados Confederados da América e declarar sua secessão dos Estados Unidos. Acreditavam que países europeus, seus principais importadores, interviriam a seu favor, mas não receberam nenhuma ajuda externa. Foram obrigados a capitular depois de quatro anos de combate.

NT*² – O termo Pai Hubbard é uma brincadeira com o vestido Mãe Hubbard, costumeiro na época. Era longo, largo e solto, com mangas compridas e colarinho alto.

NT*³Vaudeville foi um gênero de entretenimento de variedades predominante nos Estados Unidos e Canadá do início dos anos 1880 ao início dos anos 1930. Desenvolvendo-se a partir de muitas fontes, incluindo salas de concerto, apresentações de cantores populares, “circos de horror”, museus baratos e literatura burlesca, o vaudeville tornou-se um dos mais populares tipos de empreendimento dos Estados Unidos.

NT*4 – A Ceia de Gambá com Batata (Possum and Tater Supper) era um costume típico da aristocracia sulista na virada do século 19 para o 20, organizada em ocasiões especiais em salões de hotel. Segundo Bryan Edward Stone, no livro The Chosen Folks: Jews on the Frontier of Texas, pág 72, “A ceia de Gambá com Batata era uma espécie de trote para os abastados cidadãos que garantiam seu ingresso na fraternidade profissional e de negócios de Waco, fingindo comer como se fossem pobres camponeses ao invés da elite oriental que haviam passado a espelhar.” Waco é uma cidade do Texas.

NT*5 – “Tired nature’s sweet restorer, balmy Sleep!” é a primeira linha do primeiro poema da obra Night Thoughts, do inglês Edward Young (1683 – 1765).

NT*6 – O mint julep é um drink característico do sul norte-americano. O tradicional é feito com hortelã, uísque, açúcar e água, mas há diversas variantes.


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O. Henry (1862 – 1910), pseudônimo de William Sydney Porter, foi um escritor norte-americano. Autor de centenas de contos, a maior parte deles dotados de um senso de humor cativante e finais cheios de reviravoltas (plot twists), O. Henry era campeão de audiência com o público mas nem sempre com a crítica especializada. Foi comparado com o escritor francês Guy de Maupassant e considerado sua contraparte norte-americana devido aos finais inesperados, embora suas histórias fossem, no geral, mais brincalhonas.

Nascido na Carolina do Norte, onde trabalhou como farmacêutico, O. Henry se mudou para o Texas. Lá foi empregado como projetista no governo e posteriormente como caixa de banco e escriturário no First National Bank, em Austin. Leitor voraz desde menino, na juventude começou a colaborar com jornais e revistas e nunca parou. Após sua saída do banco, passou a viver apenas dos proventos literários, incentivado pela esposa. Foi acusado, anos mais tarde, de fraude e desvio de dinheiro durante seu período no banco. Fugiu para Honduras, onde continuou escrevendo, mas retornou aos Estados Unidos ao saber das condições da esposa, então no leito de morte, afligida por tuberculose. Se entregou às autoridades e cumpriu três anos de pena, sendo liberado antes dos cincos anos previstos devido ao bom comportamento. Mudou-se para Nova Iorque, onde viveu seus últimos oito anos, para ficar mais perto dos editores. Lá escreveu mais de 300 histórias. Um bebedor inveterado, O. Henry viu sua saúde se deteriorar e morreu devido a uma cirrose do fígado, diabetes e problemas do coração. Faleceu aos 47 anos.

Suas histórias, normalmente focadas nos tipos comuns que encontrou durante a vida, como policiais, escrivães, golpistas, garçonetes, ladrões e atores, são ainda hoje lembradas e lidas. Considerado um mestre da forma curta, empresta seu nome ao prestigioso O. Henry Award (Prêmio O. Henry), que premia anualmente contos de mérito excepcional escritos em inglês. Embora tenha publicado muito, poucas de suas histórias foram reunidas em livros durante sua vida, algo que tem sido remediado nas últimas décadas. Em domínio público, suas histórias podem ser encontradas na internet, no idioma original. Poucas delas foram traduzidas para o português, que incluem: três contos por Fernando Pessoa, uma edição recente de O Presente dos Magos pela falecida Cosac Naify, contos sortidos incluídos em livros infanto-juvenis e aventurescos e uma edição da Ediouro intitulada Caminhos do Destino e Outros Contos. [Suspeito, mas não tenho certeza, que esta é a primeira tradução de The Duplicity of Hargraves para o português.]

Ele Está Vivo ou Está Morto? – Mark Twain

Originalmente publicado em 1893.
Conto em domínio público, disponível em inglês.
Tradução: Santiago Santos, fevereiro de 2016 | 3.363 palavras

Eu passava o mês de março de 1892 em Menton, na Riviera francesa. Neste local afastado se tem todas as vantagens, em privado, que se teria publicamente em Monte Carlo e Nice, alguns quilômetros mais adiante. Me refiro à luz abundante do sol, à brisa tranquila e ao brilhante mar azul, sem as adições desagradáveis do barulho e rebuliço e extravagância e ostentação humana. Menton é quieta, simples, sossegada, despretensiosa; os ricos e os pomposos não a visitam. Como uma regra, quero dizer, os ricos não a visitam. De vez em quando um homem rico aparece, e naquele momento eu conhecia um deles. Parcialmente para disfarçá-lo vou chamá-lo de Smith. Certo dia, no Hotel des Anglais, no segundo café da manhã, ele exclamou:

‘Rápido! Preste atenção no homem saindo pela porta. Repare em cada detalhe.’

‘Por quê?’

‘Você sabe quem ele é?’

‘Sim. Ele passou vários dias aqui antes de você chegar. É um velho, aposentado e muito rico fabricante de seda de Lyons, dizem, e creio que seja sozinho no mundo, pois sempre parece triste e sonhador, e não fala com ninguém. Seu nome é Theophile Magnan.’

Eu supus que Smith então passaria a justificar o grande interesse que havia mostrado no Monsieur Magnan, mas, ao invés disso, mergulhou num devaneio e ficou aparentemente apartado de mim e do resto do mundo por alguns minutos. De vez em quando passava os dedos pelo sedoso cabelo branco, para auxiliar no divagar, e enquanto isso permitia que seu café da manhã esfriasse. Enfim ele disse:

‘Não, já acabou; não posso voltar a isso.’

‘Voltar ao quê?’

‘É uma das pequenas e belas histórias de Hans Andersen. Mas a deixei no passado. Parte dela é assim: uma criança possui um pássaro engaiolado, que ama mas negligencia sem muita consideração. O pássaro entoa sua canção despercebido e ignorado; mas, eventualmente, fome e sede atormentam a criatura, e sua canção se torna mais lamentosa e febril e finalmente cessa– o pássaro morre. A criança descobre e seu coração é esmigalhado pelo remorso: então, com lágrimas amargas e lamentações, chama seus companheiros, e eles enterram o pássaro com elaborada pompa e o mais terno pesar, sem saber, pobrezinhos, que não são apenas crianças que deixam poetas morrerem de fome e depois gastam nos seus funerais e monumentos uma quantia que poderia tê-los mantido vivos e em tranquilidade e conforto. Agora–’

Mas aqui fomos interrompidos. Por volta de dez da noite eu encontrei Smith, e ele me convidou para subir ao seu salão de visitas e ajudá-lo a fumar e beber uísque quente. Era um lugar aconchegante, com suas cadeiras confortáveis, suas luminárias alegres e sua amigável lareira, alimentada com oliveira envelhecida. Para tornar tudo perfeito, havia o barulho abafado do quebrar das ondas lá fora. Depois do segundo uísque e muita conversa solta e agradável, Smith disse:

‘Agora estamos devidamente acomodados– eu para contar uma história curiosa e você para ouvi-la. Ela tem sido um segredo por muitos anos– um segredo entre eu e outros três; mas quebrarei o selo agora. Se sente confortável?’

‘Perfeitamente. Prossiga.’

Aqui segue o que ele me disse:

‘Muito tempo atrás eu era um jovem artista– um artista muito jovem, de fato– e viajava pelo interior da França, rabiscando aqui e rabiscando ali, na época acompanhado por dois estimados jovens franceses que faziam a mesma coisa que eu fazia. Éramos felizes como éramos pobres, ou pobres como éramos felizes– na ordem que você julgar melhor. Claude Frere e Carl Boulanger– estes são os nomes daqueles rapazes; estimadíssimos sujeitos e os espíritos mais enaltecidos que já riram da pobreza, capazes de tirar bom proveito de qualquer situação.

‘Acabamos chegando ao fundo do poço numa vila bretã, e um artista tão pobre quanto nós nos acolheu e literalmente nos salvou da morte– François Millet–’

‘Não! O grande François Millet?’

‘Grande? Ele não era nada maior que nós, na época. Ele não possuía fama, nem mesmo na sua própria vila; e era tão pobre que não tinha nada com o que nos alimentar a não ser nabos, e mesmo os nabos nos faltavam às vezes. Nós quatro nos tornamos amigos muito rápido, amigos fraternos, inseparáveis. Pintávamos juntos com toda a nossa energia, acrescentando e acrescentando ao estoque, mas em raras ocasiões nos livrando de algo dele. Passamos tempos fascinantes juntos; mas, por minha alma!, como éramos miseráveis!

‘Por pouco mais de dois anos isso continuou. Finalmente, um dia, Claude falou:

‘“Companheiros, chegamos ao fim. Vocês entendem isso? Absolutamente ao fim. Todos decidiram– há uma liga formada contra nós. Já estive por toda a vila e é como estou lhes dizendo. Eles se recusam a nos oferecer outro centavo em crédito até que toda e qualquer dívida seja paga.”

‘Isso nos atingiu em cheio. Cada rosto estava branco de consternação. Percebemos que agora nossas circunstâncias eram desesperadoras. Houve um longo silêncio. Finalmente, Millet suspirou e disse:

‘“Nada me ocorre– nada. Sugiram algo, rapazes.”

‘Não houve resposta, a não ser que um silêncio fúnebre possa ser chamado de resposta. Carl levantou e andou nervosamente para cima e para baixo por um tempo, então disse:

‘“É uma vergonha! Olhem essas telas: pilhas e pilhas de quadros tão bons como o de qualquer pintor na Europa– não me importa quem seja. Sim, e muitos estranhos interessados disseram o mesmo– ou quase isso, de qualquer forma.”

‘“Mas não compraram”, Millet disse.

‘“Não importa, eles disseram; e é verdade. Olhe o seu ‘Angelus’ ali! Alguém pode me dizer–”

‘“Pff, Carl– Meu ‘Angelus’! Me ofereceram cinco francos por ele.”

‘“Quando?”

‘“Quem ofereceu?”

‘“Onde está ele?”

‘“Por que você não aceitou?”

‘“Calma– não falem todos ao mesmo tempo. Eu achei que ele daria mais– eu tinha certeza– parecia que sim– então eu pedi oito.”

‘“Bem– e então?”

‘“Ele disse que voltaria a me procurar.”

‘“Macacos me mordam! Por quê, François–”

‘“Ah, eu sei– eu sei! Foi um erro e fui um tolo. Rapazes, minha intenção era a melhor; vocês me entendem, e–”

‘“Bom, é claro que sabemos disso, abençoado seja o seu coração; mas não seja um tolo novamente.”

‘“Eu? Eu gostaria que alguém aparecesse e nos oferecesse um repolho por ele– vocês veriam!”

‘“Um repolho! Não, não mencione isso– eu chego a salivar. Fale de coisas menos tentadoras.”

‘“Companheiros,” disse Carl, “essas pinturas são desprovidas de mérito? Me respondam isso.”

‘“Não!”

‘“Não seriam elas do mais grande e digno mérito? Me respondam isso.”

‘“Sim.”

‘“De tão grande e digno mérito que, se um nome ilustre fosse atribuído a elas, seriam vendidas por preços esplêndidos. Não é verdade?”

‘“Certamente é. Ninguém duvida disso.”

‘“Mas– eu não estou brincando– não é verdade?”

‘“Sim, é claro que é– e nós não estamos brincando. Mas de que adianta? De que adianta? Que importância tem isso?”

‘“Dessa forma, camaradas– atribuíremos um nome ilustre a elas!”

‘A conversa animada parou. Os rostos se viraram inquisitivamente para Carl. Que tipo de pegadinha era aquela? Onde conseguiríamos um nome ilustre? E quem o emprestaria?”

‘Carl sentou e disse:

‘“Bom, eu tenho algo bastante sério para propor. Penso que seja a única maneira de nos livrar da sarjeta, e acredito que seja uma maneira garantida. Baseio essa opinião em certos fatos multitudinários e há muito estabelecidos da história humana. Acredito que meu plano deixará todos nós ricos.”

‘“Ricos! Você perdeu a cabeça!.”

‘“Não, não perdi.”

‘“Sim, você perdeu– perdeu a cabeça. O que você chama de rico?”

‘“Cem mil francos para cada.”

‘“Ele perdeu a cabeça. Eu sabia.”

‘“Sim, ele perdeu. Carl, a privação foi demais para você, e–”

‘“Carl, você deve tomar uma pílula e se deitar agora mesmo.”

‘“Façam um curativo nele antes– enfaixem a cabeça, e então–”

‘“Não, enfaixem os tornozelos dele; o cérebro está escorrendo há semanas– já notei.”

‘“Calem a boca!” disse Millet, com severidade ostensiva, “e deixem o rapaz dizer o que quer. Pois bem– nos diga o seu plano, Carl. O que é?”

‘“Bem, certo, à guisa de preâmbulo peço que notem este fato da história humana: que o mérito de muitos grandes artistas nunca foi reconhecido até depois que estivessem esfomeados e mortos. Isso aconteceu com tanta frequência que me atrevo a fundar uma lei para isso. Esta lei: que o mérito de todo grande artista desconhecido e negligenciado deve e será reconhecido e suas pinturas atingirão altos preços depois de sua morte. Meu plano é este: devemos tirar na sorte– um de nós tem que morrer.”

‘A observação nos atingiu tão calma e inesperadamente que quase esquecemos de pular. Então houve um novo coro selvagem de recomendações– recomendações médicas– para o auxílio do cérebro de Carl; mas ele pacientemente esperou a euforia abrandar e continuou a falar do seu plano:

‘“Sim, um de nós tem que morrer, para salvar os outros– e a si mesmo. Tiraremos na sorte. O escolhido será ilustre, e todos nós seremos ricos. Fiquem quietos, agora– fiquem quietos; não interrompam– Eu digo que sei do que estou falando. Aqui segue a ideia. Pelos próximos três meses aquele escolhido para morrer pintará com toda a sua energia, aumentando seu estoque o máximo que conseguir– não quadros, não! Esqueletos, estudos, partes de estudos, fragmentos de estudos, uma dúzia de pinceladas em cada– sem sentido, é claro, mas seu, com sua assinatura neles; produzirá cinquenta por dia, cada um contendo algum maneirismo ou peculiaridade facilmente identificável como seu– essas são as coisas que vendem, vocês sabem, e são colecionadas por preços fabulosos nos museus do mundo, depois que o homem se vai; teremos uma tonelada deles prontos– uma tonelada! E todo esse tempo o resto de nós estará ocupado sustentando o moribundo e convencendo Paris e os negociantes– preparativos para o evento vindouro, você sabem; e quando tudo estiver afinado e afiado, vamos surpreendê-los com a morte e fazer o notório funeral. Entenderam a ideia?”

‘“N-não; pelo menos, não to–”

‘“Não totalmente? Vocês não veem? O homem não morre de fato; ele muda seu nome e desaparece; enterramos um boneco e choramos por ele, com todo o mundo para ajudar. E eu–”

‘Mas não o deixaram terminar. Todos irromperam em um enérgico viva de aplauso; e todos pularam e festejaram pelo quarto e se penduraram no pescoço um do outro em arroubos de gratidão e alegria. Por horas falamos sobre o grande plano, sem nunca sentir fome; e enfim, quando todos os detalhes haviam sido combinados satisfatoriamente, tiramos na sorte e Millet foi eleito– eleito para morrer, como dissemos. Então raspamos o tacho e reunimos aquelas coisas de que a pessoa não se livra até que as esteja apostando contra a riqueza vindoura– quinquilharias sentimentais e coisas assim– e as penhoramos para obter o suficiente para um desjejum e uma janta de despedida, ainda que frugais, e ainda uns poucos francos para a viagem e uma pilha de nabos e afins para Millet viver por alguns dias.

‘Na manhã seguinte, bem cedo, nós três saímos, logo depois do desjejum– a pé, é claro. Cada um de nós carregava uma dúzia dos pequenos quadros de Millet, com a intenção de vendê-los. Carl partiu para Paris, onde começaria o trabalho de consolidar o nome de Millet até a chegada do grande dia. Claude e eu nos separaríamos e nos dispersaríamos pela França.

‘Bem, vai lhe surpreender saber que coisa tranquila e confortável nós arranjamos. Andei dois dias antes de começar os negócios. Então comecei a pintar uma casa de campo nos arredores de uma grande cidade– porque vi o proprietário parado em um terraço. Ele desceu para olhar– achei que o faria. Trabalhei rápido, na intenção de mantê-lo interessado. Ocasionalmente ele soltava uma exclamação de aprovação, e dali a pouco falava com entusiasmo, e disse que eu era um mestre!

‘Larguei meu pincel, enfiei a mão na bolsa, tirei um Millet e apontei a assinatura no canto. Eu disse, orgulhosamente:

‘“Suponho que você reconhece isso? Bem, ele me ensinou! Não é surpresa que eu entenda do meu ofício!”

‘O homem pareceu culposamente embaraçado, e ficou em silêncio. Eu disse, com pesar:

‘“Você não pode estar insinuando que não conhece a assinatura de François Millet!”

‘É claro que ele não conhecia aquela assinatura; mas se tornou o homem mais agradecido que você já viu por ser liberado daquela posição desconfortável em termos tão tranquilos. Ele disse:

‘“Não! É claro que é de Millet, sem dúvida! Não sei no que eu estava pensando. É claro que agora a reconheço.”

‘Em seguida, ele quis comprar o quadro; mas eu disse que embora não fosse rico eu não era tão pobre. No entanto, no fim, o deixei ficar com ele por oitocentos francos.’

‘Oitocentos!’

‘Sim. Millet o teria vendido por uma costeleta de porco. Sim, eu consegui oitocentos francos por aquela coisinha. Eu gostaria de poder pegá-la de volta por oitenta mil. Mas esse tempo já passou. Fiz uma pintura muito bonita da casa daquele homem e quis oferecê-la para ele por dez francos, mas aquilo não teria cabimento, já que eu era o pupilo de tamanho mestre, então a vendi para ele por cem. Mandei os oitocentos francos direto para Millet daquela cidade e parti novamente no dia seguinte.

‘Mas eu não andei– não. Eu cavalguei. Tenho cavalgado desde então. Vendi um quadro todo dia, e nunca tentei vender dois. Eu sempre dizia ao meu cliente:

‘“Sou um tolo por vender qualquer quadro de François Millet, pois aquele homem não vai viver três meses, e quando ele morrer seus quadros não poderão ser adquiridos de jeito algum.”

‘Tratei de divulgar o máximo possível este pequeno fato, e preparar o mundo para o evento.

‘Fui o responsável pelo plano de vender os quadros– foi minha ideia. Sugeri naquela última noite quando estávamos delineando nossa campanha, e nós três concordamos em tentar com algum afinco antes de adotar outra estratégia. Deu certo para todos. Eu andei apenas dois dias, Claude andou dois– ambos com receio de tornar Millet celebrado muito perto de casa– mas Carl andou apenas meio dia, o patife astuto e inescrupuloso, e depois disso ele viajou como um duque.

‘De vez em quando nos encontrávamos com um editor do interior e começávamos a circular uma nota pela imprensa; não uma nota anunciando que um novo pintor havia sido descoberto, mas uma nota que deixava claro que todos conheciam François Millet; não uma nota elogiando-o de qualquer maneira, mas meramente uma palavra a respeito da presente condição do “mestre”– às vezes esperançosa, às vezes abatida, mas sempre marcada pelos medos do pior. Nós sempre marcávamos esses parágrafos e enviávamos os jornais para todas as pessoas que haviam comprado quadros de nós.

‘Carl logo estava em Paris, e ele ajeitou as coisas de maneira exemplar. Fez amizade com os correspondentes e fez com que a condição de Millet fosse noticiada na Inglaterra e em todo o continente, e na América, e em todo lugar.

‘Ao cabo de seis semanas, nós três nos encontramos em Paris e decidimos fazer uma pausa, e paramos de requisitar de Millet quadros adicionais. O rebuliço era tão grande, e tudo tão propício, que vimos que seria um erro não agir agora, naquele momento, sem esperar mais. Então escrevemos para Millet ir se deitar e começar a definhar bem rápido, pois gostaríamos que ele morresse em dez dias se pudesse se aprontar.

‘Em seguida fizemos as contas e descobrimos que entre nós havíamos vendido oitenta e cinco pequenos quadros e estudos, e tínhamos sessenta e nove mil francos para mostrar por isso. Carl havia feito a última venda, a mais brilhante de todas. Ele vendeu o “Angelus” por vinte e dois mil francos. Como o glorificamos!– não prevendo que eventualmente chegaria o dia em que a França lutaria para consegui-lo e um estranho o capturaria por quinhentos e cinquenta mil, à vista.

‘Tivemos um jantar com champanhe de encerramento naquela noite, e no dia seguinte Claude e eu fizemos as malas e partimos para cuidar de Millet em seus últimos dias, para manter intrometidos fora da casa e mandar boletins diários para Carl, em Paris, com fim de publicação nos jornais de vários continentes, alimentando um mundo à espera de notícias. O triste fim chegou finalmente, e Carl estava lá a tempo de ajudar nos últimos ritos fúnebres.

‘Você lembra daquele grande funeral, e a comoção que causou por todo o globo, e como os ilustres dos dois mundos compareceram e prestaram seus pesares. Nós quatro– ainda inseparáveis– carregamos o caixão, e não permitimos que ninguém ajudasse. E estávamos certos quanto a isso, porque não havia nada dentro dele a não ser uma estátua de cera, e qualquer outro portador de caixão teria estranhado o peso. Sim, nós quatro, que havíamos afavelmente compartilhado a privação juntos nos duros tempos agora para sempre acabados, carregávamos o cai–”

‘Que quatro?’

‘Nós quatro– pois Millet ajudou a carregar seu próprio caixão. Disfarçado, claro. Disfarçado como um parente– um parente distante.’

‘Surpreendente!’

‘Mas ainda assim verdadeiro. Bem, você lembra como as pinturas valorizaram. Dinheiro? Não sabíamos o que fazer com ele. Há um homem em Paris hoje que possui setenta quadros de Millet. Ele nos pagou dois milhões de francos por eles. E quanto à enxurrada de esqueletos e estudos que Millet produziu durante as seis semanas que estivemos na estrada, bem, te surpreenderia saber a cifra pela qual os vendemos hoje em dia– quer dizer, quando consentimos em nos separar de um deles!’

‘É uma história maravilhosa, perfeitamente maravilhosa!’

‘Sim– no fim das contas é isso.’

‘O que aconteceu com Millet?’

‘Você consegue guardar um segredo?’

‘Consigo.’

‘Você lembra do homem para o qual chamei sua atenção na sala de jantar hoje? Aquele era François Millet.’

‘Meu–’

‘Deus! Sim. Ao menos uma vez eles não deixaram um gênio morrer de fome e depois colocaram em outros bolsos as recompensas que ele deveria ter para si. A este passarinho não foi permitido esgotar seu coração em cantorias sem ser ouvido e depois receber como pagamento a pompa fria de um grande funeral. Nós garantimos isso.’


Nota do tradutor

Jean-François Millet (1814 – 1875) existiu de fato e foi um importante pintor do movimento realista, cuja obra é marcada sobretudo pelas pinturas de camponeses no interior francês. O Angelus, sua obra mais conhecida, foi disputada entre colecionadores dos Estados Unidos e da França anos após sua morte, como aludido no conto. Esta disputa, famosa pelo contraste entre o alto valor que atingiu o quadro e as condições miseráveis da família de Millet, foi a principal motivação por trás da criação da lei Droit de Suite, que exige que a cada revenda parte dos direitos autorais da obra seja repassada ao autor ou seus herdeiros. Até hoje é válida em toda a Europa. Nos Estados Unidos, atualmente, a lei análoga a essa foi revogada, e o autor recebe os direitos apenas na primeira venda.

Jean-François_Millet_Angelus
Angelus – François Millet

A Droit de Suite foi apresentada formalmente em torno de 1893, data de publicação do conto. Twain construiu essa história (ele morava na Europa na época), sem dúvida, para sensibilizar os leitores acerca da sua importância, que tencionava resguardar os “artistas esfomeados”. Twain, um crítico social contumaz, não raro usava suas peças ficcionais como parábolas de suas crenças, ou metáforas claras de sua visão de mundo. O Angelus está atualmente exposto no Museu de Orsay, em Paris.


MarkTwain

Mark Twain (1835 – 1910), pseudônimo de Samuel Longhorne Clemens, foi um escritor, jornalista, orador e crítico literário norte-americano. É lembrado sobretudo por seus romances As Aventuras de Tom Sawyer (1876) e Aventuras de Huckleberry Finn (1885), este último considerado por muitos estudiosos como o primeiro “grande romance americano”. Twain escreveu, além de 11 romances, vários relatos de viagem, contos, poemas e ensaios. Ganhou uma quantia substancial de dinheiro com a literatura ainda em vida. Investimentos furados o levaram a declarar falência em 1894; alguns anos mais tarde se recuperou financeiramente.

Ele Está Vivo ou Está Morto? foi publicado em 1893, e em 1898 foi adaptado pelo próprio Twain como um roteiro para teatro, com o título encurtado de Is He Dead? (Ele Está Morto?). No entanto, a publicação da dramaturgia só ocorreu em 2003 (os manuscritos de Twain são mantidos na Universidade da Califórnia em Berkeley) e sua primeira encenação foi aos palcos em 2007. No conto é possível notar várias de suas marcas estilísticas: o humor afiado, o ouvido para o diálogo, a narrativa fluida e, sobretudo, as críticas que imputava em vários de seus contos através dos personagens. Neste caso, mais notadamente, o verdadeiro valor da arte e o reconhecimento dos artistas.

Twain viajou por quase todo o mundo, aceitando convites para fazer discursos e palestras. Seu bom-humor e perspicácia em tais eventos o tornaram célebre e uma espécie de precursor da comédia stand-up. É considerado um dos mais importantes escritores e pensadores do seu país. Já foi chamado por William Faulkner de “pai” da literatura norte-americana e Ernest Hemingway disse que “toda a literatura norte-americana descende de Huckleberry Finn”. É creditado como o primeiro a abraçar a fala cotidiana dos conterrâneos, cheia de gírias e maneirismos, e imortalizá-la nas letras, colorindo sua prosa e regionalizando-a. Em domínio público, suas obras podem ser encontradas na internet, no idioma original. As mais conhecidas, incluindo contos e ensaios, já foram traduzidas no Brasil. [Suspeito, mas não tenho certeza, que esta é a primeira tradução de Is He Living or Is He Dead? para o português.]

Bâtard – Jack London

Originalmente publicado em The Cosmopolitan em junho de 1902 como “Diable – Um Cachorro”.
Conto em domínio público, disponível em inglês.
Tradução: Santiago Santos, novembro de 2015 | 5.855 palavras

Bâtard era um demônio. Isso era reconhecido em todas as terras do norte. Era chamado de “Cria do Inferno” por muitos homens, mas seu mestre, Black Leclère, escolheu para ele o vergonhoso nome “Bâtard”. Fato é que Black Leclère também era um demônio e os dois estavam bem arranjados. Há um ditado que quando dois demônios se encontram, o estrago está feito. Isso é esperado, e era certamente esperado quando Bâtard e Black Leclère se encontraram. A primeira vez que se viram, Bâtard era um filhote meio crescido, esguio e esfomeado, de olhos amargurados; e se conheceram com mordida e rosnado e olhares perversos, pois o lábio superior de Leclère tinha um jeito lupino de se erguer e mostrar os dentes brancos e cruéis. E se ergueu então, e seus olhos cintilaram viciosamente ao pegar Bâtard e arrastá-lo para fora do enrosco da ninhada. Era certo que seus destinos estavam cruzados, pois no instante em que Bâtard afundou suas presas de filhote na mão de Leclère, Leclère friamente fechou os dedos e sufocou sua jovem vida.

“Sacredam”, o francês disse suavemente, chacoalhando o sangue fresco da mão mordida e encarando o pequeno filhote sufocando e engasgando na neve.

Leclère se virou para John Hamlin, encarregado do Armazém Milha Sessenta. “É pr’issu qui gostu deli. Cuãnto, eh, dis, M’sieu? Cuãnto? Compru eli já; compru eli agora”.

E porque o odiava com excessivo ódio amargurado, Léclere comprou Bâtard e lhe deu seu nome vergonhoso. E por cinco anos os dois se aventuraram pelas terras do norte, de St. Michael e o delta do Yukon aos extremos do Pelly, chegando a alcançar o Rio Peace, Athabasca e o Grande Lago do Escravo. E adquiriram uma reputação de maldade intransigente, do tipo que nunca antes se havia visto num homem e num cachorro.

Bâtard não conhecia seu pai – daí o seu nome -, mas, como John Hamlin sabia, o pai era um grande lobo cinzento. Mas a mãe de Bâtard, pelo pouco que lembrava dela, era rosnenta, briguenta, obscena, forte, de peito largo e robusto, com olhos malignos, vivaz como um gato e genial para artimanhas e perversidades. Não havia fé ou confiança nela. Somente se podia contar com sua astúcia, e seus flertes selvagens atestavam sua total depravação. Havia muita maldade e muita força neles, nos progenitores de Bâtard, e osso e carne de seu osso e carne, ele herdara tudo. E então veio Black Leclère, para meter sua mão pesada na pequena vida pulsante do filhote, para apertá-lo e espicaçá-lo e moldá-lo até se tornar uma grande besta eriçada, afiada em vilania, transbordando de ódio, sinistra, maligna, diabólica. Com um mestre apropriado, Bâtard poderia ter se tornado um cão de trenó ordinário e eficiente. Ele nunca teve a chance. Leclère confirmou sua iniquidade congênita.

A história de Bâtard e Leclère é uma história de guerra – de cinco anos cruéis e implacáveis, dos quais seu primeiro encontro é um resumo apropriado. A princípio a culpa era de Leclère, pois ele odiava com entendimento e inteligência, enquanto o filhote desajeitado e pernudo apenas cegamente, instintivamente, sem razão ou método. No início não havia refinamentos de crueldade (esses viriam mais tarde), mas espancamentos simples e brutalidades cruas. Em um desses episódios Bâtard machucou uma orelha. Ele nunca readquiriu o controle dos músculos dilacerados, e depois disso a orelha pendeu frouxa para manter viva a memória do seu algoz. E nunca esqueceu.

Sua infância foi um período de rebelião tola. Ele sempre era superado, mas lutava porque era sua natureza lutar. E era inquebrantável. Mesmo sob os ganidos estridentes da dor do chicote e do porrete era capaz de lançar um rosnado de desafio, a ameaça vingativa e amarga da sua alma que conquistava sem falha mais golpes e surras. Mas a sua era a vivacidade obstinada da sua mãe. Nada podia matá-lo. Ele prosperou no infortúnio, engordou com a fome, e do terrível embate pela vida desenvolveu uma inteligência sobrenatural. Possuía a furtividade e a astúcia do husky, sua mãe, e a ferocidade e a bravura do lobo, seu pai.

Possivelmente era por causa do seu pai que ele nunca chorava. Seus ganidos de filhote e suas pernas desajeitadas ficaram para trás, e ele se tornou sinistro e taciturno, rápido no ataque, imprevisível. Respondia a xingamentos com rosnados, e pancadas com mordidas, arreganhando os dentes com seu ódio implacável; mas nunca mais, nem sob a agonia mais extrema, Leclère arrancou dele um gemido de medo ou de dor. Essa inquebrantabilidade apenas alimentava a cólera de Leclère e inspirava diabruras piores.

Se Leclère dava a Bâtard meio peixe e a seus companheiros peixes inteiros, Bâtard se adiantava e roubava os peixes dos outros cachorros. Também roubava as provisões escondidas e arquitetava milhares de velhacarias, até se tornar um terror para todos os cães e donos de cães. Se Leclère batia em Bâtard e fazia carinho em Babette – Babette que não fazia metade do que ele fazia -, Batârd a derrubava na neve e quebrava sua pata traseira com as mandíbulas pesadas, para que Leclère fosse obrigado a atirar nela. Da mesma forma, em batalhas sangrentas, Bâtard dominava todos os companheiros, impunha a lei da trilha e pilhagem, e os obrigava a viver pela lei que impusera. Em cinco anos ouviu apenas uma palavra gentil, recebeu apenas um carinho de mão, e não sabia que tipo de coisas eram aquelas. Ele pulou como a coisa indomável que era e suas mandíbulas se juntaram em um instante. Foi o missionário de Sunrise, um recém-chegado ao país, que disse a palavra gentil e fez o carinho. E por seis meses depois disso ele não escreveu cartas para casa nos Estados Unidos, e o cirurgião em McQuestion viajou duzentas milhas no gelo para salvá-lo de uma infecção generalizada.

Homens e cachorros olhavam Bâtard de soslaio quando ele se esgueirava para dentro de seus acampamentos e armazéns. Os homens o cumprimentavam com pés ameaçadoramente erguidos para chutar, os cães com a pelagem eriçada e presas à mostra. Uma vez um homem chutou Bâtard, e Bâtard, com sua veloz mordida de lobo, fechou as mandíbulas como uma armadilha de ferro na panturrilha do homem até chegar ao osso. Como ele estava determinado a tomar sua vida, apenas Black Leclère, com olhos agourentos e faca de caça desembainhada, se enfiou no meio para impedir. A morte de Bâtard – ah, sacredam, isso era um prazer que Leclère reservava para si. Algum dia aconteceria, ou então – bah! quem poderia saber? De qualquer forma, o problema seria resolvido.

Pois eles haviam se tornado problemas um para o outro. O próprio ar que cada um respirava era um desafio e uma ameaça. Seu ódio os unia como o amor nunca seria capaz de unir. Leclère aguardava ansioso a chegada do dia em que Bâtard murcharia em espírito e se encolheria e choramingaria aos seus pés. E Bâtard – Leclère sabia o que estava na mente de Bâtard, e mais de uma vez lera isso nos seus olhos. E lera tão claramente que quando Bâtard estava às suas costas fazia questão de sempre olhar por sobre o ombro.

Os homens se admiravam quando Leclère recusava dinheiro pelo cachorro. “Algum dia você vai matá-lo e não valerá mais nada”, disse John Hamlin certa vez, quando Bâtard estava caído esbaforido na neve onde Leclère o havia chutado, e ninguém sabia se suas costelas estavam quebradas, e ninguém se arriscava a verificar.

“Issu”, disse Leclère, secamente, “issu é problem’eu, M’sieu.”

E os homens se admiravam que Bâtard não fugia. Eles não entendiam. Mas Leclère entendia. Ele era um homem que vivia boa parte do tempo a céu aberto, além do som da língua humana, e aprendera as vozes do vento e da tempestade, o suspiro da noite, o sussurro da madrugada, o estrondo do dia. De maneira tênue ele podia ouvir as coisas verdes crescendo, o correr da seiva, o desabrochar do botão. E conhecia a fala sutil das coisas que se moviam, do coelho na armadilha, do corvo carrancudo batendo no ar com sua asa oca, da vespa dançando sob a lua, o lobo como uma sombra cinzenta deslizando entre o crepúsculo e a escuridão. E para ele Bâtard falava de forma clara e direta. Ele entendia perfeitamente porque Bâtard não fugia, e olhava com mais frequência por sobre o ombro.

Quando enraivecido, Bâtard não era bonito de se ver, e mais de uma vez saltou na garganta de Leclère só para acabar estirado trêmulo e inconsciente na neve pela coronha vigilante do chicote. E assim Bâtard aprendeu a esperar. Quando alcançou a força plena no auge da juventude, achou que o tempo chegara. Ele tinha o peito largo, era poderosamente musculoso, de tamanho muito superior ao normal, e seu pescoço da cabeça aos ombros era uma massa de pelo eriçado – em aparência era um lobo puro-sangue. Leclère estava deitado dormindo em suas peles quando Bâtard decidiu que o tempo era propício. Ele se aproximou furtivamente, cabeça baixa na terra e orelha solitária esticada para trás, um caminhar macio e felino. Bâtard respirava gentilmente, muito gentilmente, e só ergueu a cabeça quando chegou bem perto. Pausou por um momento e olhou a garganta taurina bronzeada, pelada e enodoada, dilatando em um pulso estável e profundo. A baba pingava das presas e deslizava pela língua diante da visão, e nesse momento lembrou da orelha caída, das inúmeras pancadas e das injustiças prodigiosas, e sem o menor barulho avançou para o homem em seu sono.

Leclère acordou com a dor lancinante das presas na garganta e, perfeito animal que era, despertou lúcido e com compreensão plena. Ele fechou as duas mãos na traqueia de Bâtard e rolou para fora das peles para utilizar o seu peso. Mas os milhares de ancestrais de Bâtard haviam se agarrado às gargantas de inúmeros alces e caribus e os derrubado, e a sabedoria desses ancestrais era sua. Quando o peso de Leclère o sobrepujou, ele lançou as pernas traseiras para cima e para dentro, e rasgou peito e abdômen com suas garras, dilacerando pele e músculo. E quando sentiu o corpo do homem estremecer acima dele e se erguer, buliu e sacudiu a garganta. Seus companheiros fecharam ao redor um círculo rosnento, e Bâtard, perdendo fôlego e consciência, sabia que suas mandíbulas ansiavam por ele. Mas isso não importava – e sim o homem, o homem acima dele, e ele rasgou e arranhou, e sacudiu e buliu até seu último pingo de força. Mas Leclère o sufocou com ambas as mãos até que o peito de Bâtard arfou e se contorceu com a falta de ar, e seus olhos vitrificaram e travaram, e suas mandíbulas lentamente afrouxaram, e sua língua se projetou preta e inchada.

“Eh? Bon, seu demôniu!” Leclère gorgolejou, boca e garganta entupidas com o próprio sangue, enquanto empurrava o cachorro atordoado para longe dele.

E então Leclère xingou e afastou os outros cães enquanto caíam sobre Bâtard. Eles recuaram para um círculo maior, agachados atentamente em suas ancas e lambendo os beiços, o pelo em cada pescoço eriçado e rijo.

Bâtard se recuperou rapidamente, e ao som da voz de Leclère, vacilou até ficar em pé e oscilando para frente e para trás.

“A-h-ah! Seu grandi demôniu!” Leclére cuspiu. “Vo ti dá um jeitu; vo ti dá um belu dum jeitu, pur Deus!

Bâtard, o ar mordendo o caminho para dentro dos pulmões exaustos como vinho, desembestou a correr na direção do homem, as mandíbulas abrindo e fechando com um tique metálico. Eles rolaram e rolaram sobre a neve, Leclère batendo furiosamente com seus punhos. Então se separaram, cara a cara, e circularam para frente e para trás um contra o outro. Leclère podia ter sacado a faca. O rifle estava aos seus pés. Mas a besta nele estava acordada e enfurecida. Ele faria a coisa com suas mãos – e seus dentes. Bâtard saltou mas Leclère o derrubou com um soco, caiu sobre ele e afundou os dentes até o osso no ombro do cachorro.

Era um cenário primordial e uma cena primordial, tal qual poderia ter existido na juventude selvagem do mundo. Um espaço aberto em uma floresta escura, um ringue de cães-lobos de dentes arreganhados, e no centro duas bestas travando um combate, mordendo e rosnando, espumando de ira, ofegando, soluçando, xingando, vigorosos, exaltados e fascinados, numa fúria assassina, rasgando e dilacerando e arranhando numa brutalidade elemental.

Mas Leclère acertou Bâtard atrás da orelha com outro soco, derrubando-o, e, por um instante, imobilizando-o. Então Leclére pulou nele com seus pés e saltou várias vezes, na intenção de triturá-lo até enfiá-lo na terra. As duas patas traseiras de Bâtard estavam quebradas quando Leclère parou para recuperar o fôlego.

“A-a-ah! A-a-ah!” ele gritou, incapaz de falar, sacudindo seu punho ante a completa impotência da garganta e da laringe.

Mas Bâtard era indômito. Ele ficou ali, desconjuntado, seu lábio levantando e se contorcendo febrilmente para o rosnado que não possuía forças para proferir. Leclère o chutou, e as mandíbulas cansadas se fecharam no tornozelo mas não conseguiram furar a pele. Então Leclère apanhou o chicote e passou a quase cortá-lo em pedaços, a cada golpe da correia gritando: “Dessa veis eu ti kebro! Eh! Pur Deus! Eu ti kebro!”

No fim, exausto, desmaiando pela perda de sangue, se dobrou e desabou ao lado da vítima, e quando os cães-lobos se aproximaram para levar a cabo a vingança, com o último lapso de consciência arrastou o próprio corpo sobre Bâtard para protegê-lo de suas presas.

Isso ocorreu não muito longe de Sunrise, e o missionário, abrindo a porta para Leclère algumas horas mais tarde, ficou surpreso ao notar a ausência de Bâtard do grupo. Sua surpresa não diminuiu quando Leclère afastou os mantos do trenó, apanhou Bâtard nos braços e mancou soleira adentro. Calhou do cirurgião de McQuestion, que era uma espécie de aventureiro errante, estar por ali e ouvir a fofoca, e os dois se juntaram para cuidar de Leclère.

“Merci, non” ele disse. “Você arruma u caum primero. Morrê? Non. Issu nãu podi. Purque eu inda vo kebrá eli. Pur issu é qui eli nãu podi morrê.”

O cirurgião chamou de maravilha, o missionário de milagre, que Leclère tenha sobrevivido; e ele estava tão fraco que na primavera a febre o pegou e voltou a ficar de cama. Bâtard estava numa condição ainda pior, mas sua gana de viver prevaleceu, e os ossos de suas patas traseiras colaram, e seus órgãos se endireitaram durante as várias semanas que ficou atado ao chão. E quando Leclère, finalmente convalescente, pálido e trêmulo, foi à porta da cabana tomar um pouco de sol, Bâtard havia reafirmado a supremacia entre sua espécie, e subjugado não apenas seus companheiros como os cães do missionário.

Ele não contraiu um músculo nem crispou um pelo, quando, pela primeira vez, Leclère cambaleou apoiado no braço do missionário e afundou lentamente e com cuidado infinito no banco de três pernas.

“Bon!–” ele disse. “Bon! U sóu quenti!” E estendeu as mãos destroçadas e as banhou no calor.

Então seu olhar caiu sobre o cachorro, e a velha luz voltou a faiscar nos olhos. Ele tocou o missionário de leve no braço. “Mon père, essi é um grandi demôniu, essi Bâtard. Você vai mi trazê uma pistola, sim, pra qui eu póça bebê u sóu em pais.”

E assim por muitos dias ele sentou no sol diante da porta da cabana. Nunca dormiu, e a pistola sempre repousava em seus joelhos. Bâtard se acostumou, no início de cada dia, a procurar a arma no lugar de costume. Ao vê-la erguia ligeiramente o lábio como sinal de que entendia, e Leclère respondia erguendo seu próprio lábio num sorriso forçado. Um dia o missionário percebeu o truque.

“Virgem Maria!” ele disse. “Eu realmente acho que o bruto compreende.”

Leclére riu suavemente. “Veje você, mon père. Issu qui eu falu agora, issu tud’êli ouvi.”

Como se para confirmar, Bâtard perceptivelmente arrebitou a orelha solitária para captar o som.

“Eu digu ‘matu.’”

Bâtard deu um rugido do fundo da garganta, o pelo eriçado ao longo do pescoço, e cada músculo ficou tenso e expectante.

“Eu ergu a arma, sim, dessi jeitu.” E juntando ação à palavra, mirou a pistola em Bâtard.

Bâtard, num único pulo lateral, aterrissou na quina da cabana, fora de vista.

“Virgem Maria!”, ele repetiu, em intervalos.

Leclère sorriu orgulhoso.

“Mas por que ele não foge?”

Os ombros do francês subiram no característico gesto que significava todas as coisas da total ignorância à compreensão infinita.

“Então por que você não o mata?”

Novamente os ombros subiram.

“Mon père,” ele disse depois de uma pausa, “a domassãu inda nãu pronta. Eli é um grandi demôniu. Auguma domassãu eu kebru eli, assin i assin, em pedassinhus. Hein? Uma domassãu. Bon!–”

Chegou um dia em que Leclère reuniu seus cachorros e flutuou num bote rio abaixo até a Milha Quarenta, e até o Porco-Espinho, onde pegou uma comissão da Companhia P. C. e foi explorar por quase um ano. Depois disso remou o Koyokuk acima até a deserta Cidade Ártica, e depois voltou vagando de acampamento em acampamento, ao longo do Yukon. E durante os longos meses Bâtard foi bem instruído. Ele aprendeu muitas torturas, e, mais notadamente, a tortura da fome, a tortura da sede, a tortura do fogo, e a pior de todas, a tortura da música.

Como o resto da sua espécie, ele não gostava de música. Ela lhe causava angústia intensa, arruinando-o nervo por nervo e arrebentando cada fibra do seu ser. Fazia-o uivar, longamente e feito um lobo, como quando os lobos desafiam as estrelas em noites gélidas. Ele não conseguia evitar o uivo. Era a sua única fraqueza na disputa com Leclère, e era a sua vergonha. Leclère, por outro lado, amava a música apaixonadamente – tão apaixonadamente quanto amava uma bebida forte. E quando sua alma clamava por expressão, ela era normalmente proferida por uma ou outra dessas duas maneiras, e mais constantemente pelas duas. E quando estava bêbado, o cérebro cheio das cadências de canções desconhecidas e o demônio nele desperto e rampante, sua alma encontrava na tortura de Bâtard a expressão suprema.

“Agora nós vomus tê um poco di músika”, ele dizia. “Eh? Qu’cê axa, Bâtard?”

Era apenas uma gaita arrebentada e velha, ternamente guardada e pacientemente consertada; mas era o melhor que o dinheiro podia comprar, e de suas palhetas prateadas ele invocava estranhos ares errantes que os homens nunca antes haviam ouvido. Então Bâtard, a garganta tolhida, com os dentes bem apertados, se afastava, centímetro por centímetro, até a quina mais distante da cabana. E Leclère, tocando, tocando, um porrete robusto enfiado debaixo do braço, seguia o animal, centímetro a centímetro, passo a passo, até que não houvesse mais para onde fugir.

No início Bâtard se espremia no menor espaço possível, se encolhendo rente ao chão; mas conforme a música chegava mais e mais perto, ele era obrigado a se levantar, as costas enfiadas nos troncos, as patas dianteiras abanando o ar como se para deter as insistentes ondas de som. Ele ainda mantinha os dentes apertados, mas severas contrações musculares atacavam seu corpo, estranhos espasmos e repuxos, até que estivesse todo estremecido e se contorcendo em tormento silencioso. Enquanto perdia o controle, suas mandíbulas se arreganhavam espasmodicamente, e profundas vibrações guturais vinham à tona, num registro de som muito grave para que a orelha humana pudesse captar. E então, narinas distendidas, olhos dilatados, pelos eriçados numa fúria impotente, surgia o longo uivo de lobo. Ele nascia com ímpeto vacilante, aumentando até chegar a uma explosão sonora de cortar o coração, e morria numa angústia tristemente cadenciada – e então o próximo ímpeto, oitava sobre oitava; o coração explodindo; e a infinita aflição e miséria, sumindo, desaparecendo, caindo e morrendo aos poucos.

Era algo digno do inferno. E Leclère, com sabedoria demoníaca, parecia escolher cada nervo e tendão, e com longos gemidos e tremores e soluços forçava-os até a última centelha de penúria. Era assombroso, e pelas próximas vinte e quatro horas Bâtard ficava nervoso e desbaratado, se assustando com sons comuns, tropeçando na própria sombra, mas, ainda assim, vicioso e dominador com os companheiros. Não mostrava sinais de que seu espírito sucumbia. Ao invés disso se tornava ainda mais sinistro e taciturno, aguardando com tal paciência inescrutável que passou a intrigar e pesar sobre Leclère. O cão deitava diante da fogueira, imóvel por horas, encarando Leclère logo à frente e o odiando com seus olhos amargurados.

Muitas vezes o homem sentia que havia atentado contra a própria essência da vida – a inquebrantável essência que derrubava os gaviões do céu como relâmpagos emplumados, que impulsionava os grandes gansos cinzentos de uma zona à outra, que lançava os salmões na desova por duas mil milhas no fervente e inundado Yukon. Nessas ocasiões ele se sentia impelido a expressar sua própria essência inquebrantável; e com bebida forte, música selvagem e Bâtard, ele se entregava a grandes esbórnias, colocando à prova de todas as coisas sua força insignificante, e desafiava tudo que existia, existira e ainda existiria.

“Tem coiza aí”, ele afirmava, quando os caprichos ritmados da sua mente tocavam os acordes secretos da essência de Bâtard e traziam à tona o longo e lúgubre uivo. “Eu vô arrancá cas mias mauns, assin i assin. Ha! Ha! É ingrassadu! É muintu ingrassadu! U padri canta, as mulheras rezãu, us homeins chingãu, us passarinhu fais pio pio, Bâtard, eli fais auu-auu – i é tudo a mema coiza. Ha! Ha!”

Padre Gautier, um padre digno, uma vez o reprovou com instâncias de perdição concreta. Ele nunca o reprovou novamente.

“Podi até sê, mon père”, ele deu a resposta. “I eu achu qui vo passá pelu infernu bein rápidu, comu a madera passa pelu fogu. Eh, mon père?”

Mas todas as coisas ruins chegam ao fim, assim como as boas, e assim foi com Black Leclère. Na água baixa do verão, num bote a remo, ele saiu de McDougall para ir a Sunrise. Deixou McDougall acompanhado de Timothy Brown, e chegou em Sunrise sozinho. Além disso, sabia-se que eles haviam discutido pouco antes de sair; a Lizzie, um ofegante barco a vapor com rodas de pás, de dez toneladas, chegou três dias antes de Leclère mesmo tendo partido vinte e quatro horas depois dele. E quando ele enfim chegou, foi com um buraco de bala atravessado no músculo do ombro, e uma história de emboscada e assassinato.

Uma jazida fora descoberta em Sunrise, e as coisas haviam mudado consideravelmente. Com a infusão de muitas centenas de caçadores de ouro, um tanto de uísque e meia dúzia de apostadores equipados, o missionário viu a página dos seus anos de trabalho com os indígenas apagada. Quando as índias ficaram preocupadas em cozinhar feijões e manter o fogo dos mineradores sem esposas aceso, e os índios em trocar suas peles quentes por garrafas pretas e relógios quebrados, ele deitou em sua cama, disse “me abençoe” várias vezes, e partiu para prestar as contas num paletó de madeira oblongo e tosco. Na sequência os apostadores transferiram suas roletas e mesas de faro¹ para dentro da casa missionária, e o clique das fichas e o tilintar dos copos iam da alvorada à escuridão e à alvorada novamente.

Fato é que Timothy Brown era muito querido entre esses aventureiros do norte. A única coisa que contava contra ele era seu temperamento irritadiço e seu punho irrequieto, – algo menor, que seu coração gentil e mão indulgente mais que redimiam. Por outro lado, não havia nada para redimir Black Leclère. Ele era “negro”, como a lembrança de seus atos dava testemunho, e era odiado tanto quanto o outro era amado. Então os homens de Sunrise colocaram um curativo antisséptico no seu ombro e o arrastaram até diante do Juiz Lynch.

Era uma questão simples. Ele discutiu com Timothy Brown em McDougall. Ele saiu com Timothy Brown de McDougall. Ele chegou sem Timothy Brown em Sunrise. Considerada à luz da sua maldade, a conclusão unânime era a de que matara Timothy Brown. Por outro lado, Leclère reconheceu os fatos mas desafiou a conclusão, e deu sua própria explicação. Vinte milhas depois de Sunrise ele e Timothy Brown estavam remando o bote ao longo da costa rochosa. Dessa costa soaram dois tiros de rifle. Timothy Brown tombou do bote e afundou num vermelho borbulhante, e esse foi o fim de Timothy Brown. Ele, Leclère, mergulhou no fundo do bote com o ombro lancinante. Ficou bem quieto, espiando a costa. Depois de algum tempo dois índios ergueram suas cabeças e vieram até a beira da água, carregando entre eles uma canoa de casca de vidoeiro. Quando a empurraram rio adentro, Leclère abriu fogo. Ele acertou um, que caiu pela borda do mesmo jeito que Timothy Brown. O outro se abaixou no fundo da canoa, e então canoa e bote desceram a correnteza numa batalha à deriva. Depois disso chegaram a uma corrente dividida, e a canoa passou para um lado de uma ilha e o bote para o outro. Esse foi o último vislumbre que teve da canoa, e chegou em Sunrise. Sim, pelo jeito que o índio na canoa pulou, tinha certeza que o acertara. Isso era tudo.

Essa explicação não foi considerada adequada. Eles lhe deram uma prorrogação de dez horas enquanto a Lizzie fumegava pelo rio para investigar. Dez horas depois ela voltou chiando para Sunrise. Não houvera nada para investigar. Nenhuma evidência foi encontrada para validar suas constatações. Eles lhe disseram para fazer seu testamento, pois ele possuía uma reivindicação de mineração em Sunrise que valia cinquenta mil dólares, e eram de uma estirpe que respeitava a lei tanto quanto a aplicava.

Leclère encolheu os ombros. “Só uma coiza,” ele disse; “um piquenu, vomus disê, favô – um favorzin, é issu. Eu do meuz cincuenta míu dólars pra igreja. Eu do meu cãu rãski, Bâtard, pru demôniu. U favorzin? Primeru vocês inforca eli, i dipois vocês mi inforca. Assin é bom, eh?”

Era mesmo bom, eles concordaram, que a Cria do Inferno abrisse caminho para o seu mestre na última travessia, e a corte foi transferida para a margem do rio, onde se erguia um grande pinheiro. Slackwater Charley fez um nó de forca no fim de uma corda de reboque, e o laço foi passado pela cabeça de Leclère e apertado firme ao redor do pescoço. Suas mãos foram atadas atrás das costas, e ele foi assistido até o topo de uma caixa de biscoitos. Então a ponta solta da corda foi passada por sobre um galho saliente, esticada e afixada. Chutar a caixa debaixo dele o deixaria dançando no ar.

“Agora o cachorro,” disse Webster Shaw, antigo engenheiro de mineração. “Você vai ter que amarrar ele, Slackwater.”

Leclère arreganhou os dentes. Slackwater mascou um punhado de tabaco, assoou o nariz e começou a vagarosamente enrolar algumas voltas na sua mão. Ele pausou uma ou outra vez para afastar mosquitos particularmente ofensivos do seu rosto. Todos estavam afastando os mosquitos, exceto Leclère, cuja cabeça estava no meio de uma nuvem visível deles. Até Bâtard, deitado todo esticado no chão, com suas patas dianteiras enxotava as pestes de seus olhos e boca.

Mas enquanto Slackwater aguardava Bâtard erguer sua cabeça, um grito débil chegou pelo ar quieto, e um homem foi visto agitando os braços e correndo pela planície de Sunrise. Era o encarregado do armazém.

“P-podem cancelar, garotos”, ele ofegou, ao se juntar a eles.

“Little Sandy e Bernadotte acabaram de chegar,” ele explicou, recuperando o fôlego. “Pararam lá embaixo e subiram pelo atalho. Tão com o Beaver². Pegaram ele na canoa, preso num curso d’água ao redor duma ilha, com uns buracos de bala nele. O outro índio era Klok-Kutz, o que despachou sua índia e deu no pé.”

“Eh? Qui qui eu dissi? Eh?” Leclère exclamou exultantemente. “É essi cum certesa! Eu sei. Eu falu a verdadi.”

“O que a gente tem que fazer é ensinar a esses malditos Siwashes³ umas boas maneiras,” disse Webster Shaw. “Eles tão ficando gordos e atrevidos, e vamos ter que cortar o barato deles. Junte todos os índios e enforque o Beaver pra dar uma lição objetiva. Esse é o roteiro. Vamos lá pra ver o que ele tem a dizer.”

“Heh, M’sieu!”, chamou Leclère, quando a multidão começava a se espalhar pelo crepúsculo na direção de Sunrise. “Eu gostaria muintu di vê a diverssãu.”

“Te soltamos quando a gente voltar,” Webster Shaw gritou por sobre o ombro. “No meio-tempo medite sobre os seus pecados e os caminhos da providência divina. Isso vai te fazer bem, então fique agradecido.”

Como acontece com homens acostumados a grandes perigos, cujos nervos são saudáveis e treinados para a paciência, assim era com Leclère, que se ajeitou para a longa espera – o que quer dizer que condicionou sua mente a isso. Não havia como ajeitar o corpo, pois a corda esticada o forçava a ficar rigidamente de pé. O mínimo relaxamento dos músculos das pernas pressionavam o laço de fibras ásperas no pescoço, enquanto a posição ereta lhe causava muita dor no ombro ferido. Ele projetou o lábio inferior e soprou o ar para cima pelo rosto para afastar os mosquitos dos olhos. Mas a situação tinha a sua compensação. Ser arrancado da bocarra da morte bem que valia um pouco de sofrimento corporal, só era lamentável que fosse perder o enforcamento do Beaver.

Ele refletiu sobre isso até seus olhos encontrarem Bâtard, cabeça entre as patas dianteiras e esticado no chão, dormindo. E então Leclère parou de refletir. Ele estudou o animal atentamente, tentando perceber se o sono era real ou fingido. As laterais de Bâtard oscilavam regularmente, mas Leclère sentiu que o ar ia e vinha um tanto rápido; também sentiu que havia uma vigilância ou cautela em cada pelo que desmentia um sono isento. Ele teria dado a sua reivindicação em Sunrise para se assegurar que o cachorro não estava acordado, e a certa altura, quando uma de suas juntas estralou, olhou Bâtard rapidamente e com ar de culpa para saber se ele despertara. Ele não despertou então, mas alguns minutos depois se levantou lenta e languidamente, se espreguiçou e olhou cuidadosamente ao redor.

“Sacredam”, disse Leclère, suspirando.

Seguro que ninguém via ou ouvia, Bâtard sentou, entortou o lábio superior quase num sorriso, olhou Leclère e lambeu os beiços.

“Eu tô acabadu,” disse o homem, e riu sardonicamente alto.

Bâtard chegou mais perto, a orelha imprestável balançando, a orelha boa engatilhada pra frente com compreensão demoníaca. Ele virou a cabeça de lado intrigadamente, e avançou com passos afetados, brincalhões. Esfregou seu corpo de leve contra a caixa até que ela sacudiu e sacudiu de novo. Leclère oscilou cuidadosamente para manter o equilíbrio.

“Bâtard,” ele disse calmamente, “cuidadu. Eu ti matu.” Bâtard rosnou ao ouvir a palavra, e sacudiu a caixa com mais força. Então se ergueu, e com as patas dianteiras jogou seu peso contra ela num ponto mais acima. Leclère chutou com um pé mas a corda mordeu seu pescoço e o refreou tão abruptamente que quase o desequilibrou.

“Ei, iá! Chispa! Sai daí! –” ele gritou.

Bâtard recuou por uns sete metros, com uma postura de leviandade diabólica que Leclère não podia confundir. Ele lembrou do cachorro muitas vezes quebrando a crosta de gelo no buraco de água, se erguendo e jogando seu peso contra ela; e, lembrando, entendeu o que ele agora tinha em mente. Bâtard encarou os arredores e parou. Mostrou os dentes brancos arreganhando a boca, ao que Leclère respondeu; e então lançou seu corpo pelo ar, em carga, direto contra a caixa.

Quinze minutos mais tarde, Slackwater Charley e Webster Shaw, ao retornarem, vislumbraram um pêndulo fantasmagórico balançando para frente e para trás na luz tênue. Ao se aproximarem mais rapidamente, divisaram o corpo inerte do homem, e uma coisa viva agarrada a ele, e sacudia e bulia e lhe dava o movimento oscilante.

“Ei, iá! Chispa! Sua Cria do Inferno!”, berrou Webster Shaw.

Mas Bâtard o encarou, e rosnou ameaçadoramente, sem relaxar as mandíbulas.

Slackwater Charley sacou o revólver, mas sua mão estava tremendo, como se tomada por um calafrio, e ele se atrapalhou.

“Aqui, você pega isso”, ele disse, passando a arma adiante.

Webster Shaw deu uma risada curta, mirou entre os olhos reluzentes e apertou o gatilho. O corpo de Bâtard se contorceu com o choque, se debateu no chão espasmodicamente por um momento e ficou repentinamente mole. Mas seus dentes continuavam travados.


Notas do tradutor

NT¹Faro é um jogo de cartas francês do final do século 17. É jogado com apenas um baralho, e a vitória é alcançada quando a carta revelada pelo banqueiro corresponde a outra carta já revelada pelos jogadores. Foi o jogo de aposta mais popular nos Estados Unidos e no Canadá por boa parte do século 18 e início do 19.

NT²Beaver era o termo popular para se referir aos integrantes do povo Dunne-za ou Tsattine, nativo-americanos cujo território ficava ao redor do Rio Peace nas províncias de Alberta e Colúmbia Britânica, no Canadá. Beaver é castor em inglês, e ficaram assim conhecidos por serem “aqueles que moram entre os castores”.

NT³Siwash era um termo comum para se referir aos índios, em especial aos homens nativos. É uma adaptação do francês sauvage no jargão Chinook, muito utilizado no comércio naquela época.


Jack London

Jack London (1876 – 1916), pseudônimo de John Griffith Chaney, foi um escritor, jornalista e ativista social norte-americano. Mais famoso por seus romances Caninos Brancos (White Fang, 1906), O Lobo do Mar (The Sea Wolf, 1904) e Chamado Selvagem (The Call of the Wild, 1903), foi também um pioneiro no gênero conto, vendendo suas histórias para muitos jornais e revistas da época, como The Atlantic Monthly, Harper’s Bazaar, Colliers, The Cosmopolitan, San Francisco Examiner e The Boston Transcript.

Bâtard, publicado em 1902, faz parte da sua produção inicial (1898 a 1903), período em que escreveu fervorosamente contos, ensaios, poemas, piadas, romances, um livro infanto-juvenil e um tratado sociológico, entre outras coisas, de acordo com King Hendricks, um de seus estudiosos. London disse a críticos, a respeito deste conto, que as ações dos homens são a principal causa do comportamento dos seus animais. Este assunto foi explorado mais a fundo no romance Chamado Selvagem.

London era metódico e insistente na venda dos escritos. Sua ficção acabou caindo no gosto popular, em especial as brutais aventuras situadas no gelado norte do Canadá, onde viveu durante a Febre de Ouro do Klondike como prospector. Também fez sucesso com histórias de boxe e de piratas. Publicou 197 contos e 19 romances. Muitas dessas obras já foram traduzidas, embora os volumes de contos estejam, em sua maioria, esgotados. Em domínio público, podem ser encontrados na internet, no idioma original. [Suspeito, mas não tenho certeza, que esta é a primeira tradução de Bâtard para o português.]